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Editado por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 2004 Brenda Novak

© 2014 Harlequin Ibérica, S.A.

Um amor para toda a vida, n.º 86 - Maio 2014

Título original: A Family of Her Own

Publicado originalmente por Harlequin Enterprises, Ltd.

Publicado em português em 2005

 

Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor, incluindo os de reprodução, total ou parcial. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Books S.A.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, carateres, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos de negócios (comerciais), acontecimentos ou situações são pura coincidência.

® Harlequin, Harlequin Internacional e logótipo Harlequin são marcas registadas propriedades de Harlequin Enterprises Limited.

® e ™ são marcas registadas por Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença. As marcas em que aparece ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

Imagem de portada utilizada com a permissão de Harlequin Enterprises Limited. Todos os direitos estão reservados.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-5193-1

Editor responsable: Luis Pugni

 

Conversión ebook: MT Color & Diseño

Índice

 

Portadilla

Créditos

Índice

Prólogo

Um

Dois

Três

Quatro

Cinco

Seis

Sete

Oito

Nove

Dez

Onze

Doze

Treze

Catorze

Quinze

Dezasseis

Dezassete

Dezoito

Dezanove

Vinte

Vinte e um

Vinte e dois

Epílogo

Volta

Prólogo

 

Às dez horas de uma noite quente de quinta-feira, Booker Robinson estava sentado na sua carrinha, a olhar para a pequena casa arrendada onde Katie Rogers vivia. Não parava de dizer a si mesmo que era uma loucura estar ali. Ele não era o tipo de homem que pudesse pedir nada. Não costumava necessitar de ninguém. Desde criança que sabia que não compensava mostrar-se vulnerável.

No entanto, soubera que Katie Rogers e Andy Bray estavam noivos e que Katie ia abandonar a cidade para partir com ele. Booker sabia que, se o fizesse, cometeria um grande erro. Andy não cuidaria dela como ele. Andy não a amaria como ele. Andy só amava uma pessoa: o próprio Andy.

Booker respirou fundo e desligou o motor da carrinha. Então, saiu do carro e dirigiu-se para a entrada da casa. Esperava que Katie decidisse voltar para ele. Durante algumas semanas, tinham tido uma relação apaixonada e embriagante. Tinha a certeza de que ela sentia o mesmo que ele. No entanto, a família de Katie e a maioria dos seus amigos tinham-na convencido de que, se aceitasse alguém como Booker, um homem cadastrado e sem muito futuro, arruinaria a sua vida. Por isso, estava prestes a fugir para se casar com outro homem.

Talvez acabasse por casar com Andy, mas não o faria sem saber o que Booker sentia por ela. Ele já tinha muitas coisas de que se arrepender...

Demoraram vários minutos a abrir a porta. Finalmente, Wanda, a melhor amiga de Katie, apareceu.

– Oh... hum... Olá, Booker.

– Está em casa?

– Olha, não acho que...

Booker interrompeu-a antes que pudesse acabar a frase:

– Vi-a entrar na garagem.

– Ah! – exclamou Wanda, com um sorriso envergonhado. – Não tinha a certeza se tinha chegado, mas, se acabas de a ver, decerto que está em casa. Espera um momento.

Enquanto aguardava, Booker sentiu que a sua pulsação se acelerava. Nunca abrira o seu coração a uma mulher, por isso não sabia muito bem por onde devia começar. Não se permitira amar muitas pessoas.

«É uma estupidez tentar. Sabes disso, não é? Quem és tu para dizer que és melhor do que Andy? Pelo menos, ele vem de uma boa família e tem um curso universitário. O que é que tu podes oferecer-lhe?», dizia-se.

Esteve prestes a dar a meia volta para se ir embora, mas, naquele momento, Katie apareceu na soleira da porta.

– Booker? – perguntou. Parecia surpreendida por vê-lo ali. Não entrara em contacto com ele desde que tinham tido uma grande discussão há várias semanas, quando lhe dissera que estava tudo acabado entre eles e que queria começar a sair com Andy.

– Podemos falar?

– Não me parece – respondeu ela. – Na verdade, não temos nada a dizer um ao outro.

– Estás a cometer um erro, Katie.

– Como podes saber?

Talvez não soubesse, mas sentia-o. Deixar que Katie se casasse com outro homem era um erro. Demorara quase trinta anos a apaixonar-se, mas o inferno em que vivera durante aquelas semanas sem Katie apagara qualquer dúvida sobre os seus sentimentos.

– O que havia entre nós era muito bom.

– Eu... não posso discutir sobre isso, mas... mas... – Katie interrompeu-se. Então, prendeu uma madeixa do seu cabelo loiro comprido atrás da orelha, como se estivesse nervosa, e olhou por cima do ombro. – Lamento. Já tomei uma decisão.

Tinha uma expressão torturada nos olhos azuis. Booker sabia que estava dividida entre o que pensava, o que sentia e o que as outras pessoas lhe diziam. Sabia que Katie tinha medo do que ele fora no passado. Nem sequer ele próprio desejaria que uma filha sua se casasse com um ex-presidiário. Não podia mudar o seu passado, só o seu futuro...

– Katie... – sussurrou. Então, estendeu a mão e acariciou-lhe a face suavemente. Aquele contacto breve fê-lo desejar abraçá-la, e ela pareceu sentir algo parecido. Fechou os olhos e apertou a face contra a palma da mão de Booker, como se desejasse sentir as suas carícias. – Ainda sentes alguma coisa por mim. Eu sei. Volta para mim...

Sob a luz ténue do alpendre, viu que os olhos de Katie se enchiam de lágrimas.

– Não – replicou ela. Então, afastou-se da mão de Booker. – Não me confundas. Andy diz que, quando estiver há alguns meses longe daqui, tudo me parecerá diferente. Vamos casar-nos, ter uma família...

– Mas tu não amas Andy. Nem sequer te imagino com esse imbecil.

– É um bom homem, Booker.

– Porquê? Porque te ajudou a conseguir o dinheiro para mudares o soalho do clube Elks?

– Isso foi muito importante. Sem ele, provavelmente, não teria podido criar o clube de solteiros.

– Só o fez para te impressionar. Será que não te dás conta?

– Booker, não quero discutir sobre Andy. Estou a tentar tomar a decisão certa sobre o meu futuro e também sobre o teu. Tenho que ir...

– Casa-te comigo, Katie – pediu ele, de repente, apaixonadamente. – Sei que posso fazer-te feliz.

Katie arregalou os olhos. Sem que pudesse evitar, duas lágrimas deslizaram-lhe pelas faces.

– Booker, não posso. Tu não estás preparado para te amarrar a uma esposa e a uma família. Amas muito a tua liberdade. Soube-o desde o primeiro momento em que começámos a sair.

– Katie, talvez não tivéssemos chegado a isto se...

– Sinto muito, Booker – interrompeu-o. – Tenho que te deixar.

Sem mais, fechou-lhe a porta na cara. Quando a fechou à chave, Booker soube que a perdera.

 

Um

 

Dois anos depois...

 

Katie Rogers cheirou o fumo que vinha do motor do seu carro.

– Vamos, vamos, tu consegues – murmurou, enquanto apertava com força o volante do velho Cadillac, que era, mais ou menos, o bem mais valioso que tinha.

Comprara-o depois de vender os últimos móveis que lhes restavam, a Andy e a ela. Então, arrumara os seus poucos pertences e partira de São Francisco antes que ele voltasse para casa e suplicasse que lhe desse uma oportunidade. Não podia enfrentar Andy Bray, sobretudo quando havia um filho a caminho e tinha a sensação de que ela era a única dos dois que estava a amadurecer.

O cheiro a fumo tornou-se mais pronunciado. Katie enrugou o nariz e lembrou-se, com certa nostalgia, da carrinha que tinha quando vivia em Dundee. Andy e ela tinham-na usado para se mudarem para São Francisco, mas, uma vez ali, Andy convencera-a a vendê-la para conseguir dinheiro para um apartamento melhor.

Os faróis iluminaram o letreiro que dava as boas-vindas a Dundee. Ao ver o painel que vira milhares de vezes na sua juventude, Katie soltou um suspiro de alívio e começou a descontrair-se. Conseguira chegar a casa sã e salva. Depois de ter viajado mais de mil quilómetros, só faltavam quinze para chegar à casa dos seus pais...

De repente, o Cadillac deu um solavanco. As luzes do tablier apagaram-se. Katie carregou freneticamente no acelerador, com a esperança de avançar um pouco mais, mas não lhe serviu de nada. O carro parou no meio de uma nuvem de fumo.

– Não! – gritou Katie. Regressar a Dundee na sua situação já era suficientemente patético. Não queria que alguém a visse empanada na estrada.

Conseguiu levar o carro até à berma. Os pneus chiaram sobre a neve. Então, permaneceu ali sentada, a ouvir o motor a dar o seu último suspiro e a observar o fumo que saía do capô. O que é que ia fazer? Não podia ir a pé até à casa dos seus pais. O médico não queria que permanecesse muito tempo de pé. Apenas duas semanas antes, tivera contracções prematuras e o médico recomendara-lhe repouso absoluto. No entanto, permanecer sentada num carro que não podia levá-la a lado nenhum não ia servir de nada. Havia até o risco de o motor se incendiar e explodir.

Tirou a bagagem que levava no assento traseiro e arrastou-a até se encontrar a uma distância segura. Então, sentou-se sobre a mala maior e, enquanto via passar vários carros, pôs-se a tremer. Não tinha coragem suficiente para se pôr de pé e chamar a atenção dos condutores. Batera no fundo. A vida não podia piorar mais. Naquele momento, começou a chover.

 

 

Booker T. Robinson ligou o limpa-vidros. Ia a caminho de Dundee. Era uma noite fria de segunda-feira, por isso parecia-lhe que aquela chuva poderia dar lugar à neve antes de amanhecer. Em Fevereiro, nevava com frequência em Dundee, mas Booker não se importava. Sentia-se muito bem a viver na quinta que herdara da avó Hatfield. Além disso, o mau tempo era muito bom para o seu negócio.

Meteu um palito na boca, um hábito que apanhara quando deixara de fumar, há um ano, e calculou quanto tempo faltava para acabar de pagar a Lionel Richman. Concluiu que faltavam uns seis meses. Então, seria o dono da oficina de automóveis Lionel e Filhos. Poderia comprar o solar ao lado e expandir-se. Talvez até desse o seu nome ao negócio. Mantivera o «Lionel e Filhos» porque se chamara assim durante cinquenta anos e as pessoas de Dundee não gostavam de mudanças, tal como também não tinham gostado que ele fosse viver para ali. No entanto, desde que tomava conta do negócio, desenvolvera uma boa reputação pelos seus conhecimentos de mecânica e...

A imagem de um carro velho parado à beira da estrada chamou-lhe a atenção. Travou. Ele possuía o único reboque da cidade, mas ainda não recebera qualquer chamada a pedir ajuda.

Onde estaria o condutor? Não se via ninguém nem dentro nem perto do veículo. Certamente, o dono daquele Cadillac teria ido à boleia ou a pé até à cidade para procurar ajuda. No entanto, o fumo que saía do capô parecia indicar que o carro não se encontrava ali há muito tempo...

Mastigou o palito por um instante. Então, parou atrás do carro e deixou as luzes acesas para poder ver. Saiu do seu carro e, naquele momento, deu-se conta de que não estava tão sozinho como julgara. Alguém, aparentemente uma mulher, o observava do outro lado do carro.

Vestia uma camisola de homem, com um capuz que a protegia da chuva, umas calças de ganga muito gastas e... sandálias? Em Fevereiro? Então, deu-se conta de que o carro tinha matrícula da Califórnia e compreendeu tudo. Tirou o blusão de couro e deteve-se a poucos metros dela. Não queria assustá-la. Só queria ajudá-la a pôr o carro em andamento para poder ir tomar uma bebida com Rebecca e Josh no Honky Tonk.

– Problemas? – perguntou.

– Não – respondeu ela. Então, cobriu-se um pouco mais com o capuz. – Está tudo bem.

– Pois a mim parece-me que esse motor não cheira muito bem – disse. Então, apercebeu-se de que a mulher tinha algumas malas ao seu lado.

– Estou só à espera que o motor arrefeça um pouco.

Daquela vez, ao ouvir a voz da mulher, Booker pensou reconhecê-la. Recordou que o carro tinha matrícula da Califórnia. Não conhecia ninguém na Califórnia, à excepção de... Santo Deus! Não podia ser...

– Katie? – perguntou, tentando ver-lhe o rosto, apesar do capuz.

– Sim, sou eu – respondeu ela, muito aflita. – Agora podes rir-te de mim.

Booker não respondeu imediatamente. Na verdade, não sabia o que dizer nem o que sentir. No entanto, rir-se de Katie não era o que queria fazer naquele instante. Na verdade, o que mais queria era sair dali e não voltar a vê-la, mas não podia abandoná-la.

– Queres que te leve a algum lado?

Katie hesitou durante um instante. Então, levantou o queixo.

– Não, não é preciso. O meu pai percebe muito de carros. Ele ajudar-me-á.

– Sabe que estás aqui?

– Sim – respondeu ela, depois de outro momento de dúvida. – Está à minha espera. Imaginará o que aconteceu, quando eu não aparecer.

Booker voltou a meter o palito na boca. Uma parte dele suspeitava que Katie estava a mentir. Outra, a mais forte, sentiu um alívio imediato pelo facto de ela ser problema de outras pessoas.

– Nesse caso, vou-me embora. Diz ao teu pai que pode telefonar-me se tiver alguma pergunta.

Sem mais, regressou rapidamente à sua carrinha, Porém, ela seguiu-o antes que conseguisse escapar. Com um suspiro, abriu a janela.

– Queres mais alguma coisa?

– Na verdade, cheguei um pouco antes do que planeara e... bom – acrescentou, a tremer, – é possível que os meus pais não sintam a minha falta durante algum tempo. Acho que é melhor aceitar a tua oferta, se não te importares.

Katie dissera-lhe que estava tudo bem quando se aproximara dela. Por que não aceitara a sua palavra e partira? A dor e o ressentimento que sentira há dois anos, quando ela lhe dera com a porta na cara, ameaçaram voltar a consumi-lo. No entanto, sabia que tinha que ajudá-la. Não tinha outro remédio.

– Por que estás de sandálias? – perguntou.

– Comprei-as em São Francisco. São únicas e foram desenhadas especialmente para mim – respondeu ela, enquanto olhava para os pés molhados. – O dia em que Andy e eu comprámos estas sandálias foi o melhor dos últimos dois anos. O único dia que correu como eu desejava.

Aquelas sandálias eram um símbolo das suas ilusões perdidas. Graças a ela, Booker também perdera algumas ilusões, embora nunca tivesse tido muitas. Os seus pais tinham-se certificado disso há muito tempo.

– Entra – disse. – Vou buscar a tua bagagem.

 

 

Katie permaneceu sentada, sem falar, a ouvir o zumbido do aquecimento e o movimento rítmico do limpa-vidros sobre o vidro. De todas as pessoas de Dundee, Booker era a última que desejava ver. No entanto, era a primeira que encontrava.

Com as mãos no colo, observou os edifícios familiares diante dos quais estavam a passar. O Honky Tonk, onde costumava ir aos fins-de-semana. A biblioteca, onde trabalhava a sua amiga Delaney, que já estava casada com Conner Armstrong. A mercearia de Finlay...

– Tens frio? – perguntou Booker.

– Não – respondeu ela, embora ainda não tivesse aquecido. – Bom – acrescentou, esperando aliviar a tensão que havia entre eles, – como está tudo desde que eu me fui embora?

Viu a cicatriz que lhe percorria o rosto do olho até ao queixo, lembrança de uma rixa com navalhas, segundo ele, e a tatuagem que tinha no bíceps direito. Mexia-se cada vez que esticava os músculos.

– Booker? – insistiu, ao ver que ele não respondia.

– Não finjas que somos amigos, Katie – atalhou ele.

– Porquê?

– Porque não somos.

– Oh...

Katie sabia que Booker sempre tivera poucos amigos. Olhava para toda a gente, menos Rebecca Wells, Rebecca Hill desde que se casara com o Josh, com certa desconfiança. Tendo em conta tudo o que acontecera entre eles, Katie sabia que não devia sentir-se surpreendida. Enquanto andavam juntos, nunca tivera a certeza absoluta de que ele sentisse algo por ela. Passeava-a na sua Harley e fazia com que se divertisse muito, mas mostrava-se sempre distante. Katie convencera-se de que a sua relação não ia durar. Então, ele apresentara-se em sua casa e pedira-lhe que se casasse com ele. A única explicação que Katie podia encontrar para aquele acto era que a avó de Booker, Hatty, acabava de morrer. Ela e Booker eram muito unidos, por isso Katie suspeitava que o pedido de casamento de Booker tinha algo a ver com a sua perda. Anos depois, era evidente que ele continuava incomodado pelo facto de ela o ter recusado num momento tão difícil.

– Viro à esquerda na saída Sul? – perguntou ele, depois de alguns minutos.

– O quê? – Katie estava distraída, a observar a chuva pela janela.

– Os teus pais ainda vivem no mesmo lugar, não é?

Segundo as últimas notícias que tinha, sim, mas não tinha a certeza. Não falava com eles desde há dois natais, quando eles lhe tinham dito que não voltasse a telefonar.

– Vivem em Lassiter há trinta anos – comentou ela, com toda a confiança que conseguiu reunir. – Se bem os conheço, viverão lá outros trinta.

– Parece-me que ouvi dizer, não há muito tempo, que o teu pai ia construir uma cabana nos subúrbios da cidade. Mudaram de ideias?

A apreensão apoderou-se de Katie. Os seus pais ainda tinham o mesmo número de telefone. Ouvira a voz da sua mãe quando lhe ligara de uma cabina no dia anterior. Quisera dizer aos seus pais que ia a caminho de casa, mas, no último momento, perdera a coragem.

– Sim – mentiu. – Gostam de viver perto da padaria. Aquela padaria é a sua vida.

A gelataria Arctic Flyer apareceu à sua direita, evocando lembranças agradáveis. Katie trabalhara ali durante o liceu, porque queria experimentar uma coisa diferente da padaria dos seus pais. Estragara a máquina de gelados no primeiro dia.

Olhou para Booker. As lembranças dele não deviam ficar atrás das suas. Ouvira as histórias que as pessoas contavam sobre ele, quando passara alguns meses na cidade, aos quinze anos. Criara problemas suficientes para que todos os habitantes de Dundee o considerassem um rapaz problemático. Ela mesma mencionara algumas coisas sobre aquela visita, como, por exemplo, que roubara a carrinha de Eugene Humphries para se estampar com ela umas horas mais tarde. Na época, Katie tinha só nove anos. Só conhecera Booker anos mais tarde, quando ele fora viver com Hatty.

– Não sentes curiosidade por saber que voltei? – perguntou, a tentar meter conversa com ele.

– Isso é mais do que evidente – replicou ele, depois de olhar para as duas malas de Katie.

– Na verdade, provavelmente, não é o que estás a pensar. São Francisco é uma cidade fabulosa, a maior parte do tempo. O que acontece é que, no fundo, continuo a ser uma rapariga do campo, sabes? Decidi que São Francisco é um lugar óptimo para se visitar, mas não para se viver.

– Onde está Andy?

– Ele... ele está muito ocupado e não pôde vir.

– Ocupado? – replicou Booker.

– Sim, bom... foi atropelado por um eléctrico – Katie sorriu para que ele soubesse que estava a brincar.

Esperava que ele também sorrisse, mas Booker permaneceu muito sério. Lentamente, passou o palito para o outro lado da boca.

– O que queres dizer é que a vida em São Francisco não era o paraíso que imaginavas.

– Bom, todos cometemos erros – murmurou ela, precisamente quando ele estacionou diante da casa dos seus pais.

Ambos saíram do carro. Booker tirou as malas do banco com facilidade e levou-as até à porta. Então, tocou à campainha. Em seguida, virou-se e deixou-a sozinha, sem sequer se despedir dela.

– Por acaso, tu nunca fizeste nada de que te arrependas? – perguntou ela, antes se que fosse embora. Não teve tempo de ouvir a resposta; a porta abriu-se quase imediatamente. Pela primeira vez em dois anos, voltou a ver o rosto da sua mãe. – Olá, mamã! – exclamou, esperando que Tami Rogers se mostrasse mais compassiva do que Booker.

A expressão do rosto da sua mãe não lhe pareceu muito promissora. Quando viu Booker, os traços da sua cara ficaram ainda mais tensos.

– O que é que estás a fazer aqui?

– Eu... – sussurrou, a rezar para que Booker não pudesse ouvi-las. A dor apoderou-se dela. Não se lembrava de uma única palavra da desculpa que preparara durante a viagem. Só desejava que a sua mãe a abraçasse. – Eu... eu precisava de voltar para casa, mamã. Só durante algum tempo...

– Ah, agora queres vir para casa!

– Sei que estás zangada...

– Andy telefonou. Anda à tua procura – interrompeu-a Tami.

– Sim?

– Disse-nos que não se tinham casado – disse a mãe. Então, cruzou os braços e apoiou-se na ombreira da porta. – É verdade?

– Sim, mas só porque...

– Também disse que estás grávida de cinco meses.

Instintivamente, Katie cobriu a barriga com a mão. Ainda não engordara muito, por isso não se notava que estava grávida, sobretudo com a camisola enorme de Andy.

– Não... não foi planeado, mas, quando aconteceu, pensei que talvez Andy...

– Não quero ouvir mais nada. Essa não foi a educação que eu te dei, Katie Lynne Rogers. Eras uma boa rapariga, a melhor...

– Continuo a ser a mesma pessoa, mamã – afirmou ela.

– Não, já não és a rapariga que eu conhecia.

Katie não soube o que dizer, por isso decidiu mudar de assunto.

– Andy não tinha o direito de te dizer nada. Foi ele quem...

– É um mentiroso, tal como te dissemos. Tentámos fazer com que o compreendesses, mas tu não nos deste ouvidos. Quem anda à chuva molha-se – concluiu a sua mãe. Então, fechou a porta com decisão.

Katie pestanejou. Sentia-se vazia, incrédula. Agarrara-se à ideia de regressar ao lar da sua infância durante centenas e centenas de quilómetros. Não tinha outro sítio para onde ir. Gastara quase todo o dinheiro que tinha para chegar a Dundee. Só tinha vinte dólares no bolso. Esse dinheiro não chegaria para alugar um quarto. Nem sequer podia ir para o motel nos subúrbios da cidade sem pôr em perigo a vida do seu filho. De repente, reparou que Booker não se fora embora. Aquilo significava que, certamente, ouvira tudo. Enquanto se virava, sentiu uma vergonha quase dolorosa. Efectivamente, ele estava no passeio, encostado à carrinha, sem se importar com a chuva. Olhava fixamente para ela com os seus olhos pretos brilhantes.

O facto de saber da gravidez de Katie daquela maneira, de ver ao que Andy a reduzira... era muito humilhante. Acabara a sua relação com Booker porque desejava mais do que ele podia dar-lhe e ali estava ela...

Formou-se-lhe um nó na garganta e os seus olhos começaram a arder. No entanto, ainda tinha algum orgulho. Inclinou-se e pegou na mala mais pequena. Deixou a grande, porque era muito pesada para a carregar com dignidade. Então, endireitou os ombros e começou a afastar-se rua abaixo. Não sabia para onde ia, mas, naquele momento, qualquer lugar era melhor do que aquele.

 

Dois

 

Booker não podia acreditar no que acabava de ouvir. A sorte não só abandonara Katie, como também estava grávida. O canalha de Andy Bray, que chegara à cidade a gabar-se do que era e do que ia ser, quando, na verdade, não era ninguém, engravidara-a e abandonara-a. Desejava fazê-lo pagar pelo que fizera. Então, lembrou-se de que não representava qualquer papel na vida de Katie. Talvez a tivesse amado no passado, mas ela escolhera outro homem. Alguém que parecia muito mais respeitável do que ele, com roupas elegantes, boa família e um curso universitário. Alguém que o anulara por completo. Talvez devesse ir para o Honky Tonk e esquecer-se de que a vira. Decidiu fazer precisamente isso.

Entrou na sua carrinha, mas a mala enorme que ficara no alpendre perturbava-o. Certamente, Tami Rogers mudaria de ideia e acolheria a filha. A qualquer momento, a porta abrir-se-ia e algum membro da família iria atrás dela.

Booker esperou, mas a porta não se abriu. Os relâmpagos iluminavam o céu e os trovões rugiam ao longe. Quando o vento aumentou, Tami espreitou furtivamente pela janela. Booker sentiu um raio de esperança, mas, quando a mulher viu que ele continuava ali, correu novamente as cortinas.

– Não é problema meu – murmurou, finalmente.

Carregou no acelerador, mas nem sequer conseguiu percorrer um quarteirão. Então, lembrou-se das palavras com que Katie se despedira dele. «Por acaso, nunca fizeste nada do que te arrependas?»

Havia muitas coisas de que se arrependia. Em criança fora tão rebelde que o tinham expulsado de mais escolas do que conseguia lembrar-se. Mandara um homem para o hospital só porque olhara para ele com má cara. Passara dois anos na prisão por roubar um carro que nem sequer queria. Quando reflectia sobre tudo o que fizera e sentira antes de fazer vinte e cinco anos, sabia que era um milagre ter chegado aos trinta. Se não fosse a sua avó, talvez nunca tivesse conseguido dar um novo rumo à sua vida.

Pelo retrovisor, viu que Katie contornava a esquina. Com aquelas roupas molhadas, devia estar gelada. Além disso, estava grávida. Travou bruscamente e deu a volta. Parou diante da casa dos Rogers. Então, pôs a mala de Katie na carrinha e foi atrás dela.

 

 

Katie ouviu a carrinha de Booker a aproximar-se por trás. Não conseguira conter as lágrimas, mas, com a chuva, duvidava que ele se desse conta.

Ele reduziu a velocidade ao chegar ao seu lado. Então, abriu a porta do co-piloto.

– Entra!

– Vai-te embora – replicou ela, sem olhar para ele. Não queria que Booker visse a sua dor.

– Alojar-te-ei em minha casa durante algumas noites, até resolveres a situação com os teus pais. Entra antes que apanhes uma pneumonia.

– Estou bem – declarou ela, apesar de ser mentira. Sentia-se triste, zangada, envergonhada...

– Para onde pensas ir? São mais de onze horas da noite!

Katie não respondeu, porque não sabia. Tinha amigos na cidade, pessoas com quem andara na escola e com quem trabalhara. Tinha a certeza de que alguém a deixaria ficar em sua casa durante uma noite ou duas. No entanto, não lhe seria nada fácil pedir-lhes um favor daqueles, porque, desde que se fora embora, não entrara em contacto com ninguém, a excepção da sua melhor amiga, Wanda, que se casara e fora viver para o Wyoming.

– Vai começar a nevar – acrescentou Booker.

– Eu sei.

– Estragarás as sandálias.

– Já estão estragadas... – sussurrou. Há muito tempo que estragara tudo. As sandálias eram a última coisa.

Booker acelerou o motor. A carrinha aumentou de velocidade e parou diante de Katie. Ele saiu e aproximou-se dela.

– Dá-me a mala.

Katie protegeu a mala com o seu próprio corpo, mas ele agarrou-lhe na mão e tirou-lha. Ficaram um em frente ao outro durante alguns segundos, debaixo da chuva torrencial. De repente, enquanto olhava para ele, Katie sentiu tanta vontade de ver um dos sorrisos raros de Booker que lhe vieram as lágrimas aos olhos.

– Lamento – disse, suavemente.

A raiva reflectida no rosto de Booker desapareceu.

– Todos fizemos coisas de que nos arrependemos – disse. Então, pôs a mala na carrinha.

 

 

A casa da quinta Hatfield não mudara muito. Enquanto Booker ia buscar uma toalha, Katie esperou-o na sala e recordou a mulher que vivera ali. Embora de aparência frágil, era a mulher mais obstinada que Katie conhecera na sua vida. Hatty falecera pouco antes da sua partida. Na época, Katie estava tão desejosa de se ir embora que não pensara muito na morte da idosa. No entanto, sabia que a morte de Hatty afectara muito Booker.

– Toma – disse ele, a oferecer-lhe uma toalha, umas calças e uma t-shirt secas. Tirara a camisa e vestira uma t-shirt que moldava o seu tronco e que mostrava a parte inferior das tatuagens que tinha nos braços.

– Eu tenho roupa – comentou Katie, ao dar-se conta de que aquelas roupas eram dele.

– Não queria mexer na tua mala. Devolves-mas de manhã.

Deixou-a a secar-se e foi para a cozinha. Katie ouvia-o abrir os armários e as gavetas, enquanto mudava de roupa. Ainda tinha muito frio e sabia que demoraria um pouco a aquecer, mas ficava contente por estar abrigada. Entrou na cozinha com a toalha enrolada à cabeça. A roupa de Booker ficava-lhe muito larga. Tentou não prestar atenção ao aroma que a impregnava, o aroma de Booker.

– Tens fome? – perguntou ele.

– Para ser sincera, não – respondeu. Não queria incomodá-lo mais do que o necessário.

– Acho que não te faria mal engordar alguns quilos.

– Tenho a certeza de que engordarei bastante nos próximos meses.

– Queres ovos e torradas?

Como, na verdade, tinha fome, Katie assentiu. Não comera muito, para poder pagar a gasolina.

– Agradeço-te muito que me ajudes – disse. – A casa está em muito boas condições.

– A minha avó cuidava bem dela.

– Deves ter muitas saudades dela.

Booker rebuscou numa gaveta e tirou uma espátula.

– O que é que Andy faz agora? – perguntou Booker, mudando de assunto.

– Não sei.

– Há quanto tempo o deixaste? – quis saber ele, a olhar para ela como se fosse atravessá-la com os olhos.

– Há três dias.

– E já não sabes o que é que ele faz?

– Olha, não quero falar de Andy.

Booker aproximou-se do frigorífico.

– Um ovo ou dois?

– Dois.

– Quando foi a última vez que comeste? – perguntou ele, depois de pôr a caixa dos ovos sobre a banca, ao lado do fogão.

– Hoje.

– Hoje?

– Sim, bom, tu sabes... há um bocado – respondeu ela, a tentar evitar dar-lhe uma resposta concreta. – Cheira muito bem.

Booker pusera os ovos na frigideira. Katie ouviu-os crepitar e, a pouco e pouco, começou a aquecer.

– E tu? O que é que fizeste desde que eu me fui embora? – perguntou.

– Trabalhei.

– Em quê?

– É o dono da oficina de reparação de automóveis Lionel e Filhos – disse uma terceira voz.

Katie virou-se e viu Delbert Dibbs apoiado na ombreira da porta, a esfregar os olhos. Um rottweiler do tamanho de um pónei acompanhava-o. Delbert vestia um pijama.

– Voltaste! – exclamou, ao reconhecê-la. – Fico muito contente, Katie. Senti a tua falta. Gostava que me cortasses o cabelo.

Katie nem sequer teve tempo de se levantar. Delbert aproximou-se dela rapidamente e abraçou-a com força. Nunca tinham sido amigos, mas ela cortara-lhe o cabelo algumas vezes, quando trabalhava no cabeleireiro. Além disso, tinham andado juntos na escola até que, no segundo ciclo, se tornara evidente que Delbert não estava a desenvolver-se normalmente e passara para o ensino especial.

– O que é que estás a fazer aqui? – perguntou Katie, quando Delbert a soltou.

– Agora vivo aqui. Vivo com Bruiser e Booker.

Evidentemente, Bruiser era o rottweiler que farejava Katie com curiosidade. No entanto, ela não conseguia compreender o que unia Booker e Delbert. Como teriam acabado duas pessoas tão diferentes a viver juntas?

– Desde quando?

Delbert sentou-se com uma expressão triste no rosto

– O meu pai morreu. Sabias, Katie? Um dia, voltei para casa e ele só olhava para mim muito fixamente. Não me dizia nada.

– É horrível – comentou ela. – Sinto muito. Não sabia.

A tristeza de Delbert desapareceu tão depressa como apareceu.

– Queres que te mostre o que fiz?

– Hum... está bem.

Delbert endireitou-se e correu para fora da cozinha. Katie interrogou Booker com o olhar.

– Delbert vive aqui contigo? – perguntou. – Como é que veio cá parar?

– Conheci-o na oficina, quando a comprei.

– E?

– Ouviste o que ele disse. O pai dele morreu.

– Por isso, acolheste-o em tua casa?

– Trabalha para mim. Na verdade, ensinei-lhe muitas coisas sobre os carros.

Ensinar um ofício a Delbert devia ser um processo lento e frustrante. O facto de Booker ter paciência suficiente para isso e de se ter dado a esse trabalho, quando ninguém mais se preocupara em fazê-lo, impressionou muito Katie.

– Deve haver mais alguma razão.

– Não. Delbert só tinha o pai. Quando ele morreu, não havia mais ninguém que pudesse cuidar dele.

– É muito amável da tua parte – comentou ela. Booker não parava de a impressionar. – O que é que lhe teria acontecido se não tivesses intervindo?

– Teria ido para um asilo de Boise.

– A maioria das pessoas teria deixado que fosse.