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Editados por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 2010 Robyn Carr. Todos os direitos reservados.

DESTE LADO DO PARAÍSO, Nº 41 - Julho 2012

Título original: Forbidden Falls

publicada originalmente por Mira books, Ontario, Canadá

Todos os direitos, incluindo os de reprodução total ou parcial, são reservados. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Enterprises II BV.

Todas as personagens deste livro são fictícias. qualquer semelhança com alguma pessoa, viva ou morta, é pura coincidência.

™ ® Harlequin, logotipo Harlequin e Romantic Stars são marcas registadas por Harlequin Enterprises II BV.

® e ™ São marcas registadas pela Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença. As marcas que têm ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-0579-8

Editor responsável: Luis Pugni

 

Conversión ebook: MT Color & Diseño

www.mtcolor.es

 

 

Este livro é dedicado à minha filha e melhor amiga, Jamie Lynn. Obrigada por seres tão maravilhosa. Estou muito orgulhosa de ti.

Um

 

Noah Kincaid, recentemente ordenado pastor da igreja presbiteriana, estava a navegar pela Internet, a passar o tempo, quando descobriu, quase por acaso, que, no eBay, leiloavam uma igreja em Virgin River, uma vila da qual nunca tinha ouvido falar. Desatou a rir-se, mas sentiu curiosidade. Estava há algum tempo à espera pacientemente que lhe atribuíssem uma paróquia e pensou que não perdia nada por ir dar uma olhadela àquele lugar. Assim, pelo menos, teria uma boa desculpa para passar o dia fora da cidade e ver algo diferente. Tinha ouvido dizer que o norte da Califórnia era lindo.

A primeira coisa que lhe chamou a atenção foi a beleza das montanhas, dos rios e das sequoias. A vila estava um pouco velha e a igreja estava quase em ruínas, mas reinavam ali uma paz e uma serenidade que não podia desdenhar. Nem esquecer. Parecia um lugar sem complicações.

Na vila, ninguém reparou nele. Os homens que viu usavam o cabelo cortado ao estilo militar ou trança e barba, como os pescadores com quem Noah trabalhara durante anos. Ele encaixava bastante bem naquele ambiente. Usava umas botas gastas, as suas calças de ganga estavam tão usadas que eram quase brancas e estavam rasgadas aqui e ali, e a sua camisa de ganga tinha os cotovelos coçados e os punhos e o colarinho desfiados. O seu cabelo preto frisava-se no colarinho da camisa. Pensava cortá-lo assim que lhe atribuíssem uma paróquia, mas, naquele momento, encaixava na perfeição. Parecia um cobói depois de um dia árduo de trabalho. Fisicamente, estava em forma, como os homens de Virgin River. Tinha passado anos a trabalhar num barco pesqueiro e no porto, a arrastar redes e a içar toneladas de peixe fresco.

Não lhe custara localizar a igreja, nem tinha necessitado de uma chave para entrar. Estava fechada com tábuas e parecia estar abandonada há anos, mas a porta lateral não estava trancada. Por dentro, estava despida e cheia de lixo acumulado durante anos, talvez desperdícios de sem-abrigo que se refugiavam ali. Quase todas as janelas já estavam partidas quando as tinham tapado com contraplacado. Mas, quando chegou à abside, descobriu um vitral deslumbrante, protegido por tábuas do lado de fora. Estava intacto.

Depois, deu uma volta de carro pela vila, o que não lhe levou muito tempo. Bebeu um café no único restaurante que havia, tirou umas quantas fotografias e partiu. Ao chegar a Seattle, entrou em contacto com Hope McCrea, a mulher que leiloava a igreja no eBay.

– A igreja está fechada há anos – disse-lhe ela, com voz áspera. – Há muito tempo que não há religião nesta vila.

– Tem a certeza de que a vila a necessita? – perguntou Noah.

– Não totalmente – respondeu ela. – Mas far-lhe-ia bem um pouco de fé, certamente. A igreja deve ser aberta ou destruída. Uma igreja vazia é um mau agouro.

Noah não podia estar mais de acordo.

Apesar de estar ocupado na faculdade onde dava aulas, Noah não conseguia tirar Virgin River, nem aquela igreja da cabeça. Foi à reunião do presbitério com a ideia de comprar a igreja e descobriu que já estavam a par da sua existência. Mostrou-lhes as fotografias e concordaram que a igreja tinha muitas possibilidades. Interessou-lhes a ideia de lhe atribuírem um pároco. A população era do tamanho adequado para formar uma congregação e não havia mais igrejas na vila. Mas o restauro seria muito dispendioso. Não tinham orçamento. Agradeceram a Noah e prometeram atribuir-lhe uma paróquia o quanto antes.

O que o presbitério não sabia era que Noah tinha recebido recentemente algum dinheiro. Para ele, uma pequena fortuna. Tinha trinta e cinco anos e desde os dezoito que tinha estudado e trabalhado como um escravo. Enquanto frequentava a universidade, trabalhara no porto de Seattle. A sua mãe falecera há um ano, deixando-lhe, para sua surpresa, uma parte considerável da herança dela. Assim, Noah ofereceu-se para aliviar as dificuldades financeiras do presbitério, encarregando-se dos custos do restauro da igreja em jeito de doação, caso considerassem oportuno nomearem-no pastor de Virgin River. Uma proposta muito tentadora para a igreja presbiteriana.

Antes de fechar o negócio, Noah telefonou ao seu melhor amigo, o homem que o tinha convencido a entrar no seminário. George Davenport sentenciou que estava louco. George, um pastor presbiteriano reformado, dava aulas na Seattle Pacific University há quinze anos.

– Ocorrem-me milhares de formas de esbanjares esse dinheiro – disse-lhe. – Vai a Las Vegas e aposta tudo no vermelho. Ou financia uma missão ao México. Se aquela gente necessitasse de um pastor, já se teria posto à procura de um.

– É curioso que a igreja continue lá, de pé, sem ser usada, como se estivesse à espera de renascer. Tem de haver algum motivo para que a tenha visto no eBay – disse Noah. – Nunca tinha ido àquela página.

Depois de muito debaterem, George reconheceu:

– Se o edifício estiver em bom estado e o preço não for excessivo, talvez resulte. Conseguirás uma boa redução de impostos com a doação para as obras de restauro e, além disso, terás oportunidade de servir uma congregação pequena e pobre, numa vila atrasada das montanhas onde não há rede telemóvel. Assenta-te como uma luva.

– Não há congregação, George – recordou-lhe Noah.

– Então, terás de a reunir tu, filho. Se alguém consegue fazê-lo és tu. Nasceste para isso e, antes que te ofendas, não estou a falar do teu ADN. Refiro-me a puro talento. Já te vi a pescar e sempre pensei que era um símbolo. Vai, se é o que queres. Abre as tuas portas e o teu coração, e dá-lhes tudo o que tens. Além disso, és o único pastor ordenado que conheço que tem algum dinheiro.

Portanto, Noah ultimou o acordo com o presbitério e esperou que a sua mãe não estivesse às voltas na campa. Para dizer a verdade, sempre o tinha apoiado tacitamente quando, anos antes, decidira fugir da carreira pastoral como da peste. E tinha um bom motivo. O pai de Noah, para além de ser um homem frio e manipulador, era um poderoso evangelista da televisão que gozava de uma certa fama. Noah tinha escapado. A sua mãe, pelo contrário, não pudera fazê-lo.

Se alguém lhe tivesse dito dezassete anos antes, quando fugira da casa do seu pai aos dezoito, que um dia seria pastor presbiteriano, teria desatado a rir-se. E, no entanto, ali estava. E queria aquela igreja. Aquela igreja em ruínas numa vila das montanhas, aprazível e sem complicações.

Várias semanas depois, Noah seguia na sua autocaravana com quinze anos, que seria o seu lar durante uma longa temporada. A reboque levava a sua carrinha Ford com vinte anos. Durante o trajeto até ao norte da Califórnia, telefonou para o escritório de George, antes que o seu telemóvel perdesse a rede entre as árvores altas das montanhas.

– Estou a caminho de Virgin River, George.

– Bom, filho, e como te sentes? – perguntou George, rindo-se. – Parece-te que conseguiste a pechincha do século ou achas que acabarás arruinado e na rua?

Noah riu-se.

– Não tenho a certeza. Quando a igreja estiver apresentável, eu estarei sem um cêntimo. Se não conseguir atrair as pessoas, dentro de pouco tempo estarei outra vez em Seattle, a atirar peixe – disse, referindo-se a um dos seus antigos trabalhos no porto do centro de Seattle, onde se dedicava literalmente a atirar grandes peixes de um lado para o outro do cais. Fora lá que George o descobrira. – Vou começar já as obras e espero que o presbitério não me retire o seu apoio se não aparecer ninguém nos ofícios. Porque, se não pudermos confiar sequer na Igreja...

George respondeu com uma gargalhada sincera.

– Eu não me fiaria muito neles. Aqueles presbiterianos pensam demasiado. Sei que ao princípio não gostei muito da ideia, Noah, mas desejo-te sorte – acrescentou. – Orgulho-me de ti por te teres arriscado desse modo.

– Obrigado, George. Manter-nos-emos em contacto.

– Boa sorte, filho – disse George, muito sério. – Espero que encontres o que andas à procura.

Era dia um de julho quando Noah entrou em Virgin River e parou diante da igreja. Lá estacionado havia um velho Suburban muito grande e coberto de lama. Ao seu lado esperava uma senhora idosa, baixa, com o cabelo branco crespo, uns óculos enormes e um cigarro na boca. Usava umas sapatilhas enormes que pareciam nunca ter sido brancas e um casaco com os bolsos rasgados, apesar de ser verão. Ao ver que Noah estacionava e saía da autocaravana, a senhora atirou o cigarro ao chão e apagou-o com o pé. «Uma das beldades espampanantes de Virgin River», pensou Noah, com ironia.

– É o reverendo Kincaid, suponho... – disse ela.

Noah deduziu pela sua expressão que esperava alguém um pouco mais refinado. Talvez um senhor de calças de fato e camisa branca engomada. Com uns mocassins reluzentes, talvez, e o cabelo bem cortado. Ou que se tivesse barbeado, pelo menos.

Noah estava desgrenhado, com a barba grande e as calças de ganga sujas de óleo de motor, pois, duzentos quilómetros antes, tivera de parar para dar uma vista de olhos à caravana.

– Senhora McCrea – respondeu, estendendo-lhe a mão.

Ela apertou-lha e, em seguida, pôs-lhe as chaves na mão.

– Bem-vindo. Quer que lhe mostre tudo?

– Necessito das chaves? – perguntou. – O edifício não estava fechado da última vez que estive aqui. Pude vê-lo tranquilamente.

– Viu-o? – perguntou ela, visivelmente surpreendida.

– Claro. Vim dar uma olhadela antes de licitar a igreja. A porta não estava trancada, portanto, permiti-me entrar. O presbitério só necessitava do relatório do mestre-de-obras sobre as condições estruturais do edifício. Eu mesmo lhes facilitei imensas fotografias.

A senhora McCrea subiu os óculos enormes.

– O que é você, um pároco ou uma espécie de agente secreto?

Ele sorriu.

– Pensava que o presbitério tinha comprado a igreja por pura fé?

– Imagino que não me tenha ocorrido outra possibilidade. Bom, então, vamos ao bar de Jack. Está na hora de beber um copo. Ordens do médico. Eu ofereço-lhe um.

– O médico também lhe ordena que fume? – perguntou Noah, com um sorriso.

– Certamente, filhinho. Não comece a chatear-me.

– Tenho de conhecer esse médico – disse Noah, enquanto a seguia.

Hope parou de repente, olhou para ele por cima do ombro enquanto alisava o casaco e disse:

– Está morto – deu meia volta e entrou no bar de Jack.

 

 

Noah só estava há dois dias na vila quando teve de ir a Fortuna comprar produtos de limpeza. As estradas, estreitas e sinuosas, conduziram-no à autoestrada e maravilhou-se por ter chegado são e salvo a Virgin River na autocaravana e com a carrinha a reboque. Estava ainda a meio do caminho quando pôde verificar em primeira mão como a vida nas montanhas era diferente da vida na cidade, no campus e no porto de Seattle.

Viu um animal imóvel na berma e como, por pura coincidência havia espaço para estacionar ao lado, parou e saiu da carrinha. Quando estava a alguns passos, verificou que era um cão. Aproximou-se. As moscas voavam à volta do animal, que tinha parte do pelo coberto de sangue, mas Noah detetou um leve movimento. Agachou-se junto do cão, que tinha os olhos abertos e cuja língua pendia da boca aberta. Respirava, mas saltava à vista que estava quase morto. O estado do pobre animal partiu-lhe o coração.

Naquele momento, uma carrinha velha estacionou atrás da sua e dela saiu um homem. Noah pensou que fosse um rancheiro ou um agricultor. Usava calças de ganga, botas e chapéu de cobói, e coxeava ligeiramente, como se lhe doessem as costas.

– Algum problema, jovem? – perguntou.

Noah olhou para ele por cima do ombro.

– Um cão – disse. – Atropelou-o um carro. E já há algum tempo. Mas está vivo.

O rancheiro agachou-se.

– Hum... – resmungou e levantou-se. – Muito bem. Eu encarrego-me disto.

Noah espantou as moscas e acariciou a cabeça e o pescoço do animal.

– Calma... A ajuda vem a caminho – estava ainda a acariciá-lo quando viu ao seu lado as botas do rancheiro, juntamente com o cano de uma espingarda que apontava ao peito do cão.

– É melhor que te afastes, filho – disse o homem.

– Eh! – gritou Noah, afastando a espingarda. – Mas o que está a fazer?

– A poupar sofrimento a esse pobre animal – respondeu, num tom que dava a entender que a pergunta lhe parecia ridícula. – Tens alguma ideia melhor?

– Levá-lo ao veterinário – respondeu Noah, levantando-se. – Talvez possam tratá-lo.

– Amigo, olha para esse cão. Está esquelético. Já estava quase morto de fome quando o atropelaram. Não seria correto deixá-lo aqui moribundo – apontou outra vez a espingarda.

E Noah voltou a afastá-la.

– Onde fica o veterinário mais próximo? – perguntou. – Eu levo-o lá. Se não tiver salvação, não precisará de levar um tiro. O veterinário pode dar-lhe uma injeção.

O rancheiro coçou o queixo e abanou a cabeça.

– Nathaniel Jensen vive perto daqui, no 36, antes de chegar a Fortuna. Trabalha com animais grandes, mas tem cães. Se não puder ajudar-te, poderá indicar-te outro sítio. Ou abater o pobre animal. Mas esse cão não vai aguentar vivo até ao veterinário, amigo.

– Como vou para lá? – perguntou Noah.

– Vira à esquerda no 36 ao chegares a Waycliff Road. Verás os estábulos e a clínica do doutor Jensen. Fica a poucos minutos daqui, colina abaixo – abanou outra vez a cabeça. – Tudo isto poderia acabar em menos de trinta segundos.

Noah não fez caso e voltou para a sua carrinha. Abriu a porta do lado do acompanhante, regressou para junto do animal e pegou-lhe ao colo. Foi então que descobriu que era uma fêmea. O sangue estava seco e não sujava, mas as moscas continuavam a voar à volta da ferida e Noah pensou que acabaria com larvas na roupa. Estava a meio caminho da sua carrinha quando o rancheiro disse:

– Boa sorte, jovem.

– Sim – resmungou ele. – Obrigado.

O doutor Nathaniel Jensen era um tipo simpático, um pouco mais jovem do que Noah e muito mais disposto a ajudar do que o velho rancheiro. Examinou a cadela num minuto e disse:

– Talvez seja Lucy. O seu dono era um rancheiro daqui, que morreu num acidente de carro, perto de Redding, há uns meses. Levava um reboque com um cavalo. Morreram o animal e ele. A sua cadela, uma border collie, não apareceu. Talvez tenha sido projetada da carrinha. Ou talvez tenha fugido, assustada. Enfim, se for Lucy, aposto que tentava encontrar o caminho de volta a casa.

– A família encarregar-se-á dela?

– O velho Silas era viúvo. Tinha uma filha, casada com um militar, mas mudaram-se há mais de vinte anos. Venderam o rancho e o estábulo de Silas. Os animais que restavam, os cavalos e os cães, também foram vendidos. Acho que a filha nem sequer voltou para a venda. Poderia fazer algumas chamadas, para ver se alguém sabe onde está. Mas isso levaria tempo e a velha Lucy não o tem. De qualquer forma, não se encarregou dos outros animais do seu pai. E nem sequer sabemos se esta é...

– A velha Lucy? – perguntou Noah, admirado.

– Não o dizia nesse sentido. Não é assim tão velha. Deve ter três ou quatro anos. Silas tinha imensos cães no rancho. Cães pastores. Mas Lucy era a sua preferida e ia com ele para toda a parte. Está uma desgraça.

– Pode fazer alguma coisa por ela?

– Bom, posso tratar-lhe uma possível ferida na cabeça, procurar a origem da hemorragia, limpá-la, sedá-la se o necessitar, administrar-lhe antibióticos, fazer-lhe uma transfusão se for necessário... Mas será muito caro e não creio que a filha de Silas queira pagar as despesas. As pessoas daqui, os agricultores e os rancheiros, não são muito sentimentais com os cães. Não estão dispostos a gastar mais do que lhes custaria o animal.

– Começo a dar-me conta – disse Noah, enquanto tirava a sua carteira do bolso. Extraiu um cartão de crédito e disse: – Ainda não tenho telefone. Acabo de chegar e o meu telemóvel não tem rede. Telefonarei ou passarei por aqui. Faça o que puder.

– Não há nada de mal em abatê-la, Noah – disse Nathaniel, suavemente. – Estando tão mal, era o que faria a maior parte das pessoas. Mesmo que sobreviva, não há garantias de que vá recuperar totalmente.

Noah acariciou a cabeça da cadela e pensou: «Também não há garantias quando se trata de nós e, no entanto, tentamo-lo».

– Dê-lhe algo forte para a dor, está bem? Não quero que sofra enquanto vê o que pode fazer por ela.

– Tem a certeza? – insistiu Nathaniel.

Noah sorriu.

– Ligo-lhe amanhã à tarde. E obrigado.

No dia seguinte, soube que, para além de ter duas costelas partidas e diversos arranhões e feridas, Lucy estava desnutrida, infestada de vermes e pulgas, e sofria de uma infeção sistémica. Poderia recuperar, dissera-lhe o doutor Jensen, mas o seu estado era grave. Se recuperasse as forças, convinha esterilizá-la. Portanto, além de tudo o resto, a pobre Lucy teria de fazer uma histerectomia.

Noah deu-lhe o número de telefone do bar que havia junto da igreja, caso acontecesse alguma coisa. O doutor Jensen conhecia Jack, o dono do bar.

Noah descobriu muito depressa que o centro de comunicações de Virgin River estava situado justamente ao lado da igreja, no bar de Jack. O dono era um tipo muito amável, que parecia conhecer toda a gente e saber tudo. Interrogou brevemente Noah a respeito da sua nomeação, da sua formação e dos seus planos para a igreja, e isso bastou para que toda a vila o soubesse. Noah esperava ouvir várias piadas e um ou outro sarcasmo sem má intenção por ter comprado uma igreja em ruínas no eBay, e não se enganara. Mas a gente da vila pareceu aliviada ao saber que era um pastor ordenado e não o que parecia, um lenhador desempregado. Afinal, era fácil deduzir que era um homem habituado ao trabalho físico, pois tinha as mãos e os antebraços cobertos de cicatrizes finas, lembranças de quando trabalhava nos barcos e no porto.

Noah explicou que o edifício pertencia oficialmente à igreja, mas que seria administrado por um conselho de paroquianos assim que começasse a funcionar e se formasse a congregação. Era de esperar que a propriedade da igreja passasse, com o tempo, para a congregação, quando crescesse e conseguisse angariar fundos para a sua manutenção.

– O que lhe parece um lugar agradável e discreto para que as pessoas se reúnam, se apoiem mutuamente e rezem na companhia de outros? – perguntou Noah. – Não haverá ressurreições, nem sacrifícios de animais enquanto não nos conhecermos melhor – acrescentou, com um sorriso.

Jack não só lhe dera uma boa impressão, como também pouco depois começara a comportar-se como um verdadeiro amigo. Noah ia diariamente ao bar, onde bebia no mínimo uma chávena de café, e conheceu muitos habitantes da vila através de Jack. Além disso, o telefone de Jack era o seu contacto com o veterinário.

– Nate telefonou, Noah – informou-o Jack. – A tua cadela continua a aguentar-se. Está melhor.

– Já vale mais do que a minha carrinha? – perguntou Noah.

Jack riu-se.

– Já vi aquela carripana, Noah. Aposto que já valia mais quando a apanhaste na estrada.

– Tem graça – disse Noah. – Aquela carrinha leva-me onde quero ir. Quase sempre...

O sócio e cozinheiro de Jack, a quem chamavam o Pregador, convidou Noah a usar a sua ligação à Internet por satélite para que pudesse ver o seu correio eletrónico e navegar na Internet, mas advertiu-lhe que não comprasse mais nada que Hope McCrea vendesse.

Quando não estava a limpar a igreja ou a conhecer a vila, ia ver Lucy à clínica do doutor Jensen. Como fazia bom tempo, Nate tinha-a numa quadra vazia e Noah passava mais ou menos uma hora sentado no chão, ao seu lado, a falar-lhe e a acariciá-la. Quando a cadela já estava ali há uma semana, tornou-se evidente que ia recuperar. Dez dias depois, já conseguia andar, embora devagar.

– Não me mostres a conta – disse Noah a Nate Jensen, durante uma das suas visitas. – Não quero chorar diante de ti.

Não havia casa paroquial onde pudesse viver, mas estava cómodo na caravana e tinha a carrinha para se movimentar pelas montanhas. Bateu a algumas portas para informar os habitantes de que era novo na vila e pensava abrir a igreja. Esperava que alguém se oferecesse para o ajudar a limpar, mas preferiu não o pedir e, até àquele momento, não tinha aparecido nenhum voluntário. As pessoas pareciam extremamente amáveis, mas Noah tinha a impressão de que preferiam esperar um pouco, ver que tipo de pároco era. Era muito provável que não fosse o que pretendiam, mas só o tempo o diria.

Reuniu bolos e biscoitos suficientes para abrir uma pastelaria. As mulheres da vila passavam por lá para lhe levarem doces e darem-lhe as boas-vindas à vizinhança. Mas, apesar de ser extremamente guloso, Noah começava a ficar um pouco farto de comer doces. Inclusive, pensou fugazmente em organizar uma feira de confeitaria.

Outra coisa que fez foi visitar o hospital mais próximo, o de Grace Valley.

Gostava de ir ver os doentes e os afligidos, porque, embora rezar fosse o seu ofício, consolar o próximo era a sua vocação. Dado que não havia capelão no hospital, era o clero local que se encarregava de visitar os doentes, de modo que Noah pediu a uma voluntária do hospital que lhe indicasse onde havia alguém a quem pudesse saber bem uma visita amistosa. A voluntária olhou-o de cima a baixo, com desconfiança. Estava vestido como sempre, de calças de ganga, botas e camisa de flanela. E, embora estivesse limpo, teve a impressão de que, se não tivesse uma Bíblia na mão, a voluntária não o teria levado a sério. Estava claro que ali os pastores tinham de se arranjar mais um pouco para visitar os doentes.

A sua primeira visita foi a um idoso amargurado que, ao ver a Bíblia, resmungou:

– Não estou com humor.

Noah riu-se.

– Como não posso guardar a Bíblia no bolso, porque não me diz o que lhe apetecia fazer? Falar, contar piadas, ver televisão?

– O que és tu, filho? – perguntou o idoso.

– Sou americano...

– Não, referia-me à tua religião.

– Ah... Presbiteriano.

– Há cinquenta anos ou mais que não entro numa igreja.

– Não me diga... – respondeu Noah.

– Mas, quando ia, não era a uma presbiteriana, nem pensar.

– Entendo.

– Eu nasci católico!

– A sério? – perguntou Noah. – Bom, vejamos... – procurou no bolso das suas calças de ganga e tirou um terço. – Sabe para que serve isto?

– O que raios faz um presbiteriano com uma coisa dessas? Agora, usam-nos?

– Não, continuamos a rodear-nos do elementar, mas sou uma espécie de pastor polivalente. Quere-lo?

– Não penso usá-lo – respondeu, desafiante. – Pode deixá-lo, mas não penso usá-lo.

– Claro – disse Noah. – Bom, o que está a ver na televisão?

– Andy Griffith – respondeu o idoso.

– Ótimo, eu adoro essa série! Já viu o episódio em que Barney tem uma mota com sidecar? – Noah entrou no quarto e ocupou a cadeira que havia junto da cama do homem, pondo-lhe o terço entre as mãos artríticas.

– Vi. E viu aquele em que se tranca na cela?

– Não o faz frequentemente? – perguntou Noah, com um sorriso. – E aquele em que a tia Bee se embebedou sem querer?

– Otis, o bêbedo da vila, esse, sim, é uma figura – respondeu o idoso.

Demorou um pouco, mas, por fim, descobriu que aquele homem era Salvatore Salentino, Sal para abreviar. Estiveram um bocado a recordar os seus episódios favoritos. Depois, Sal necessitou de ajuda para ir à casa de banho e, em seguida, quis falar-lhe da sua saudosa carrinha, que não podia conduzir desde que o tinham metido num lar. De seguida, falou-lhe da sua filha, que tinha ido viver para longe das montanhas e que raramente o visitava. Depois, explicou-lhe como odiava os computadores. E, finalmente, perguntou a Noah se voltaria em breve, porque dias depois o enviariam de volta para o lar.

– Poderia passar por lá, se quiseres, Sal – respondeu Noah.

– Podes, se quiseres – disse o idoso. – Mas não tenhas ilusões de que vais tornar-me presbiteriano, nem sonhes!

Noah sorriu.

– Pelo amor de Deus, não... – disse. – Só que há muito tempo que não tinha ninguém com quem ver The Andy Griffith Show.

 

 

Não havia muito para salvar na antiga igreja. Os bancos tinham desaparecido, os eletrodomésticos da cozinha tinham sido arrancados, o púlpito, o altar e o batistério primavam pela sua ausência e não havia um único acessório à vista. Vendera-se tudo quando a igreja fechara as suas portas. Havia, no entanto, aquele vitral incrível na parte frontal do edifício. Uma obra de arte valiosa e digna de admiração.

A primeira coisa que Noah fez ao começar a limpar foi pedir um escadote a Jack e arrancar as tábuas da fachada. À luz do dia, o vitral era muito maior e mais bonito do que podia permitir-se uma igreja com escassos meios materiais e surpreendeu-o que não o tivessem desmontado e vendido ou levado para outra igreja. Quando olhava para ele, sentia uma espécie de arrebatamento de determinação. Tinha a sensação de que aquele era o seu lugar. Era uma imagem de Jesus com uma túnica branca e os braços estendidos, oferecendo as palmas. Sobre o seu ombro havia uma pomba e, aos seus pés, um cordeiro, um coelho e um cervo. Ao entardecer, a luz iluminava os olhos de Jesus e formava um feixe que resplandecia no interior da igreja, um caminho de luz no qual Noah via o pó a dançar. Não tinha genuflexório, mas ficava de pé diante daquela bela criação, com as mãos nos bolsos, e repetia a prece mais bonita que conhecia, a oração de São Francisco de Assis: «Senhor, faz-me um instrumento da tua paz».

Quando estava há três semanas em Virgin River, Lucy recebeu finalmente a alta. O doutor Nathaniel Jensen deu-lhe a conta e Noah dobrou-a ao meio, guardou-a no bolso das Levi’s e recusou-se a vê-la até Lucy estar em casa. Ao vê-la, levou uma mão ao coração.

– É verdade que me teria custado menos um carro – disse e Lucy lambeu-lhe a mão. – Recorda-me de manter os olhos fixos na estrada quando atravessar aquelas montanhas – acrescentou.

Lucy estava ainda muito longe de ser uma cadela brincalhona. Tinha de tomar vitaminas e antibióticos, e de fazer uma dieta especial para recuperar. Era uma border collie branca e preta, misturada com outra raça, e tinha uns olhos castanhos cujo olhar podia ser, por vezes, muito triste e patético. Noah comprou-lhe uma cama macia que levou para o escritório da igreja e o Pregador acedeu a preparar-lhe duas vezes por dia uma refeição especial à base de frango e arroz, dado que Noah não tinha muito espaço para cozinhar na autocaravana. Lucy conseguia subir os três degraus do alpendre do bar, onde comia muitas das suas refeições, mas custava-lhe horrores subir as escadas que levavam ao escritório da igreja. Normalmente, Noah acabava por a levar ao colo.

Com as visitas aos habitantes da vila, o cuidado de Lucy e a limpeza da igreja, Noah apercebeu-se de que ia necessitar de ajuda. Portanto, assim que teve o telefone instalado, pôs um anúncio para arranjar um ajudante. Recebeu mais chamadas do que esperava, mas, assim que respondia a algumas perguntas sobre o horário, o salário e os pagamentos extra, a maioria das pessoas dizia: «Voltarei a ligar-lhe». As responsabilidades do emprego não eram as típicas, era necessário limpar e pintar, para além de montar o escritório, e supunha que as pessoas o considerassem um trabalho demasiado árduo.

Marcou entrevista com três mulheres que não se incomodaram em fazer perguntas. Com Lucy deitada na sua cama, junto da velha secretária que havia no escritório, preparou-se para as entrevistar.

A primeira foi Selma Hatchet, uma senhora de sessenta anos que usava bengala.

– É o pastor? – perguntou.

– Sim – respondeu Noah, levantando-se. – Prazer em conhecê-la. Sente-se, por favor – disse e assinalou a cadeira que havia diante da secretária. Quando estavam os dois sentados, começou a entrevista. A senhora Hatchet tinha criado os seus filhos e dois netos, fizera muitos trabalhos de voluntariado e frequentava há vinte anos a igreja presbiteriana de Grace Valley.

– Senhora Hatchet, este emprego acabará por ser de secretária, mas, nesta altura, requererá muito esforço. Não necessito apenas de ajuda para organizar o escritório e a biblioteca. Também é preciso varrer e limpar, pintar, fazer pequenos trabalhos de alvenaria e talvez também levantar muito peso. Talvez não seja o que está à procura.

Ela endireitou-se e levantou o queixo.

– Quero dedicar-me à obra do Senhor – disse, crispada. – Carregarei de boa vontade qualquer fardo que Deus me confie.

Noah perguntou-se fugazmente se a senhora Hatchet pensaria que tinha um seguro contra acidentes caso se magoasse nas costas ou caísse de um escadote.

– Bom, isso é admirável, mas, neste caso, a obra do Senhor vai ser muito chata e, certamente, acabaria a pedir aos Céus um analgésico para as dores musculares.

Acompanhou-a à porta, prometendo que se manteriam em contacto. A candidata seguinte parecia mais apta para o trabalho árduo que a aguardava e estava mais do que disposta a pôr mãos à obra, por muito difícil ou sujo que fosse o trabalho.

Rachael Nagel tinha quarenta e cinco anos, era esposa de um rancheiro e estava habituada ao trabalho árduo, mas dava um pouco de medo. Tinha um olhar de recriminação e de desconfiança, e começou logo a interrogar Noah.

– Não é um daqueles reverendos liberais, pois não?

«Liberal» era quase o segundo nome de Noah. O seu pai era um fanático do fogo e do enxofre, do inferno e da condenação. Certamente, seria por isso que ele não era.

– Hum, há quem me considerasse liberal e quem me considerasse conservador. Diga-me, senhora Nagel, toca órgão ou piano?

– Com um rancho para gerir, nunca tive tempo para frivolidades, mas criei os meus sete filhos com mão firme. Garanto-lhe que posso fazer com que a doutrina da Igreja seja seguida à letra.

– Que dom maravilhoso! – respondeu Noah. – Avisá-la-ei quando tomar uma decisão.

– Não devia ter esse cão na igreja – assinalou ela. – Acabará por lhe dar problemas.

– E onde sugere que o ponha? – perguntou Noah.

– Dado que não tem terras, poderia pô-lo numa casota lá fora. Ou atá-lo a uma árvore.

Noah compreendeu então que a senhora Nagel não lhe servia.

A sua terceira candidata era Ellie Baldwin. Noah estava sentado à secretária quando entrou no seu escritório. Ficou parado e, depois, conseguiu finalmente levantar-se para a cumprimentar. Era jovem, de vinte e poucos anos, no máximo. E alta, mediria perto de um metro e oitenta. Grande parte daquele metro e oitenta eram umas pernas muito compridas que apareciam sob uma minissaia rodada. Calçava sandálias de salto alto e tinha uma cabeleira de caracóis ruivos com madeixas loiras que lhe caíam pelos ombros e pelas costas. A camisola amarela, justa e provocante, deixava ver pelo decote, de propósito, um pouco do sutiã roxo. Noah não podia negar que era uma visão deliciosa, mas não costumava ver trajes tão pouco pudicos numa igreja.

Ela tinha uma folha amarrotada de jornal na mão.

– Queria falar com o reverendo Kincaid – disse.

– Eu sou Noah Kincaid. Como está?

– Você é...?

– O pastor. E você deve ser a menina Baldwin.

Tinha rímel e eyeliner nos olhos, base nas faces, os lábios pintados de vermelho e as unhas compridas pintadas de um azul brilhante. Ao percorrer-lhe as pernas com o olhar, Noah descobriu que também tinha as unhas dos pés pintadas a combinar. Ela sorriu-lhe ao entrar no escritório. Em seguida, virou-se bruscamente para tirar a pastilha da boca, mas Noah não viu onde a guardava. A imagem do seu sorriso, no entanto, ficou-lhe gravada na mente. Era lindo e parecia, além disso, cheio de esperança.

Mas como lhe ocorrera aparecer ali vestida como se fosse pedir emprego num bar? «Ai, Senhor! Porquê a mim?», pensou Noah. Estendeu-lhe a mão, com a esperança de que não lhe deixasse a pastilha colada na palma.

– Como vai?

– Bem, obrigada – disse ela. – Já preencheu a vaga?

– Tenho duas candidatas que prometem. Mas falemos do trabalho – disse. Sentiu peso na consciência. Era impossível que ele, um pastor viúvo de trinta e cinco anos, contratasse uma ajudante com aquelas características. As pessoas não entenderiam. Ou, pior ainda, achariam entender. Aquela entrevista seria uma perda de tempo.

– Ena, é o seu cão? – perguntou ela, sorrindo a Lucy.

– Apresento-lhe Lucy – respondeu Noah. Ao ouvir o seu nome, a cadela levantou a cabeça.

– Já é muito velha? Parece muito cansada.

– Está a recuperar de um acidente. Encontrei-a na berma da estrada e, de repente, tornei-me o seu novo dono – disse. – O trabalho não se limita ao escritório. Como pode ver, estamos a fazer obras de restauro. A igreja só estará pronta para acolher os fiéis quando acabarem os trabalhos, que serão muito pesados e chatos. Dois meses, pelo menos.

Ela assentiu.

– Sim – disse. – Muito bem.

Ele arqueou os sobrolhos.

– Não se ofenda, mas parece-me demasiado frágil para este tipo de trabalho.

Ela riu-se e todo o seu rosto se iluminou.

– Ah, sim? Pois, esta rapariga frágil já despejou muitos baldes de lixo e levantou muito peso, Reverência.

Ele pigarreou.

– Chame-me Noah, por favor. Não sou o papa.

– Eu sei – respondeu ela. – Era uma brincadeira.

– Ah... Claro, claro... – disse ele. – Bom, não será só organizar o escritório, atender o telefone e gerir a agenda. Também necessito de ajuda para arrastar móveis, pintar, limpar, etc.

– Entendido – respondeu.

Noah inclinou-se para a frente.

– Menina Baldwin, porque quer este emprego?

– Não é um bom emprego? – perguntou ela. – O anúncio não dizia grande coisa, mas parecia um trabalho digno e decente.

– Claro. E porque lhe interessa exatamente?

– Preciso de mudar de ares. Algo um pouco mais seguro. Menos stressante.

– E o seu último emprego ou o atual é...?

– Bailarina. Mas o horário não me dava jeito. Tenho filhos. Neste momento, estão com o meu ex-marido, mas quero ter um emprego que possa desempenhar enquanto estão na escola, percebe?

– Mas tem experiência como secretária?

– Para quando tivermos acabado de engessar, pintar e mudar móveis? Claro! Imensa! Trouxe o meu currículo – disse e tirou da mala uma folha muito manuseada.

Noah deu-lhe uma olhadela. Não viu escrito «bailarina» em lado nenhum, mas suspeitava que tipo de bailarina fora a menina Baldwin. A sua forma de se vestir falava por si só. Mas também trabalhara para um agente imobiliário, para um administrador de propriedades e para um...

– Um advogado? – perguntou, surpreso.

– Sim. Um tipo muito simpático. E eu fazia muito bem o meu trabalho. Pode telefonar-lhe, ele lho dirá. Disse que me escreveria uma carta de recomendação assim que lho pedisse.

– E porque deixou o emprego?

Ela desviou o olhar, incomodada.

– Ele gostava muito da forma como trabalhava, garanto-lhe, mas a sua mulher não queria ver-me nem pintada. Mas telefone-lhe – acrescentou, voltando a olhar para ele. – Fazia muito bem o meu trabalho.

Ellie Baldwin já trabalhara em tudo, desde num cais de cargas e descargas a uma loja de conveniência.

– Como é possível que já tenha feito tantas coisas? – perguntou Noah, perplexo.

– Trabalhava em dois sítios ao mesmo tempo – encolheu os ombros. – De dia, trabalhava em escritórios, para ganhar experiência. E, depois, tinha outro emprego a tempo parcial à noite e aos fins de semana. Trabalhei num supermercado à noite e, depois, comecei a trabalhar numa empresa de limpezas, a limpar escritórios. Tenho muita experiência.

– E o cais de carga? – perguntou Noah, levantando o olhar do seu currículo.

– Isso foi para um comerciante. Mas foi temporário, até conseguir encontrar um trabalho que não me partisse as unhas – sorriu-lhe. – Certamente, não lhe ocorrerá nada em que não tenha trabalhado.

– Fantástico... – disse ele. – Posso ficar com isto?

Pareceu sobressaltar-se um pouco.

– Não pode copiar o que lhe interessar? Custou-me muito fazer esse currículo e só tenho uma cópia.

– É óbvio – disse Noah.

– Certamente, deveria fazer cópias – acrescentou ela, – mas não tenho computador. Ajudou-me a fazê-lo uma amiga.

– Não faz mal – respondeu ele. E pôs-se a copiar alguns dados da folha, embora não tivesse intenção de fazer mais averiguações.

Quando voltou a olhar para ela, custou-lhe não reparar nos seus seios.

– Diga-me uma coisa. Toca órgão ou piano?

– Órgão? Não. Mas a minha avó ensinou-me a tocar piano e adorava hinos. Certamente, conseguiria desenrascar-me, se tivesse tempo para praticar um pouco. Há muito tempo que não toco.

– Hinos religiosos?

Ela sorriu.

– Cresci com eles, acredite ou não.

– A sério? – perguntou Noah, intrigado. Ficou a olhar para ela, ensimesmado. – Bom – disse, sobressaltado, – onde vive, menina Baldwin?

Ela inclinou-se para a frente e os seus seios estiveram prestes a sair da camisola. Noah sentiu que os olhos lhe saltavam das órbitas e que a tentação lhe causava formigueiro nos dedos.

– Chama-me Ellie – disse ela. – Se não tenho de te chamar Reverência, tu podes chamar-me Ellie. Neste momento, vivo em Eureka, mas gostaria de tirar os meus filhos de lá. Queria levá-los para um sítio pequeno e agradável onde pudessem crescer seguros, percebes?

– Que idade têm os teus filhos, se não te importares que to pergunte?

– Danielle tem oito e Trevor tem quatro – sorriu, orgulhosa. – São fantásticos. Lindos e inteligentes, e... Enfim – disse, endireitando-se, – o que posso dizer? Também são muito saudáveis. Não vou faltar ao trabalho por estarem doentes, nem nada do estilo.

Noah ficou atónito.

– Não pareces ter idade para... – calou-se. Aquilo não lhe dizia respeito.

– Tive-os muito jovem, eu sei. Mas estou muito feliz por os ter.

Passado um instante de silêncio, Noah disse:

– Sim. Claro, claro... Bom, olha, tens um currículo excelente. Posso voltar a telefonar-te?

Ela fez má cara.

– Sim – respondeu, – claro – levantou-se. – Eu gostaria que me levasses a sério. Necessito do emprego. Procurei por toda a parte um emprego que possa ter enquanto os meus filhos estão na escola e foi uma treta, sabias? Desculpa. Não devia ter dito isto.

Noah notou que um sorriso aflorava aos seus lábios.

– Garanto-te que consigo fazer quase tudo – insistiu ela. – Sou muito trabalhadora.

– E és muito qualificada – disse ele. – Ligar-te-ei – acrescentou, estendendo-lhe a mão.

Ellie baixou os olhos e apertou-lha sem força.

– Obrigada – disse, desanimada.