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Editado por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

© 2007 Anne Kristine Stuart Ohlrogge. Todos os direitos reservados.

TEMPESTADE DE GELO, Nº 28 - Junho 2011

Título original: Ice Storm

Publicada originalmente por Mira Books, Ontario, Canadá.

Todos os direitos, incluindo os de reprodução total ou parcial, são reservados. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Enterprises II BV.

Todas as personagens deste livro são fictícias. Qualquer semelhança com alguma pessoa, viva ou morta, é pura coincidência.

™ ® Harlequin, logotipo Harlequin e Romantic Stars são marcas registadas por Harlequin Enterprises II BV.

® e ™ São marcas registadas pela Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença. As marcas que têm ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

I.S.B.N.: 978-84-9000-254-4

Editor responsável: Luis Pugni

ePub: Publidisa

Inhalt

Prólogo

Um

Dois

Três

Quatro

Cinco

Seis

Sete

Oito

Nove

Dez

Onze

Doze

Treze

Catorze

Quinze

Dezasseis

Dezassete

Dezoito

Dezanove

Vinte

Vinte e um

Vinte e dois

Vinte e três

Vinte e quatro

Promo

Prólogo

Antes

Mary Isobel Curwen nunca dera um tiro a um homem. Estava de pé, imóvel, atordoada. Nunca abrira fogo com uma pistola e a sensação de a ter na mão causava-lhe calafrios. A mão e o braço vibraram e conseguiu sentir o cheiro da pólvora e do sangue. Não quis olhar para ele, jazendo no chão, e por nada do mundo se teria aproximado para ver o que fizera.

Ter-lhe-ia posto uma bala na cabeça? No peito? Estaria morto ou apenas ferido? Devia ver… tivera boas razões para disparar, mas não podia deixar que um homem sangrasse até à morte, mesmo que ele tivesse tentado matá-la.

Ou talvez pudesse fazê-lo. Talvez pudesse largar a arma e desatar a correr o mais depressa possível, antes de ele se levantar e de começar a persegui-la ou antes de um dos seus amigos aparecer alertado pelo ruído.

Talvez pudesse levar a arma com ela, para o caso de ser necessária. Ainda tinha a mochila pendurada ao ombro. Pôs a pistola pesada dentro da mochila, sentindo que as suas mãos tremiam. Era lógico. Acabara de matar um homem.

A sua vítima continuava imóvel e um charco de sangue começava a espalhar-se sob o seu corpo. Estava definitivamente morto. E ela… como ia viver sem ele?

Começara a chover há algumas horas. As ruas estavam molhadas e as luzes reflectiam-se no pavimento enquanto chegava a noite, depois de ter fechado a porta do armazém abandonado sem fazer ruído. Pensou em tirar as sandálias, mas não podia correr descalça pelo meio de uma cidade. Tinha uma pistola na mochila e o homem que amava estava morto. Não podia arriscar-se a chamar a atenção.

Virou-se para trás com os cabelos despenteados e tentou prendê-los. Ergueu os ombros e começou a andar sob a chuva, tranquila e serena, contendo o grito no mais profundo do seu ser. Quando encontrassem o corpo ela já teria desaparecido e não haveria modo de relacionar Mary Isobel Curwen a um terrorista morto no porto de Marselha. Ninguém saberia. Só ela. E teria de viver com aquele segredo, tal como aprendera a viver com tudo o resto.

Killian morrera. Longa vida para Mary Isobel Curwen.

Sem ele.

Um

No presente

Madame Isobel Lambert estava cansada depois de um longo fim-de-semana em Lake District. Brincara com os filhos dos seus anfitriões, dera longos passeios, comera até se saciar, bebera demasiado vinho tinto, lutara com a sua consciência e matara dois homens. Tudo sem fumar um cigarro. Não era razão para estar precisamente animada.

Os homens mereciam morrer, disso não havia dúvida. Manuel Kupersmith e Jorge Sullivan, traficantes de droga com um gosto especial pela tortura e pelo terrorismo, eram o pior da sua índole e com eles de nada servia a justiça tradicional. Se tivesse de o fazer, teria posto uma bala em cada um dos seus cérebros retorcidos. Mas bastara-lhe sabotar o seu carro. Enquanto ela passava o fim-de-semana com um membro do parlamento e a sua jovem família, fora-lhe bastante fácil entrar na garagem da pousada enquanto os dois homens estavam na cama. Percebia muito de carros e, se os seus cálculos estivessem correctos, os travões falhariam na curva apertada sobre a falésia Lohan. Se os travões falhassem demasiado cedo, o carro podia atropelar algum transeunte, se falhassem demasiado tarde, podia chocar contra um carro na vila vizinha. Isobel não queria causar danos colaterais, mas valia a pena correr o risco.

No fim, correra tudo na perfeição. Quando os seus anfitriões a tinham levado à estação de comboio de Lohan Downs, tinham passado junto dos carros da polícia e das barreiras protectoras destruídas. O seu anfitrião fizera alguns comentários sobre a segurança rodoviária e Isobel ficara em silêncio e suspirara de alívio.

Levara o Sunday Times para a viagem de comboio de regresso a Londres e acabara as palavras cruzadas num tempo recorde. O seu apartamento em Bloomsbury recebeu-a com um silêncio sepulcral. Despojou-se da roupa e foi directamente para o duche, tão serena e impassível como sempre, ignorando o tremor das suas mãos.

Esperou que a água aquecesse antes de se pôr de baixo do chuveiro. E só então começou a chorar. Um choro silencioso e comedido, não pelos homens mortos, mas pela sua própria alma perdida.

Peter Madsen levantou o olhar quando madame Lambert entrou no escritório na manhã seguinte com um copo de café numa mão e um jornal por baixo do braço. O mesmo jornal que Peter estava a ler naquele momento.

– Aquele acidente perto da falésia Lohan foi uma pena – disse, olhando para ela com os seus olhos azuis penetrantes.

– É verdade – concordou ela, com a mesma tranquilidade. Peter podia ter-se encarregado disso, mas já não fazia esse tipo de trabalho. Todos tinham os seus limites com o trabalho sujo ou acabavam queimados ou começavam a cometer demasiadas falhas. Peter fora feito para estar no escritório, não por causa da sua perna lesionada, mas porque vira e fizera demasiado. A sua única ambição agora era ter uma vida normal junto da sua esposa americana e Isobel não faria nada para tentar mudá-lo.

Mas estava a ficar sem gente em quem pudesse confiar. Nos três anos decorridos desde que ocupara o lugar de Harry Thomason como chefe do Comité, perdera três homens muito eficientes. Bastien desaparecera nas montanhas da Carolina do Norte com a sua mulher e os seus filhos, Peter retirara-se do serviço activo e Takashi O’Brien alternava o seu tempo entre Tóquio e Los Angeles. Ainda podia contar com ele para fazer o que fosse necessário, mas Isobel não era o tipo de mulher que mandava outras pessoas fazer as coisas que ela nunca faria. E Takashi também iniciara uma nova vida, não precisava de sujar as mãos de sangue.

Morrison na Alemanha e MacGowan na América Central continuavam activos e a missão tailandesa estava quase terminada. O primo de Takashi, Hiromasa Shinoda, chegaria à cidade a qualquer momento e, se fosse tão bom como Takashi dizia, seria uma ajuda muito valiosa. Mas passaria um tempo até poder atribuir-lhe missões a solo e Isobel não sabia em quem podia confiar o seu treino.

Odiava não ter as coisas definidas.

– Pareces nervosa – observou Peter, num tom frio e desprovido de toda a simpatia, exactamente o que ela precisava.

– Estou bem. Alguma notícia do primo de Taka?

– Ainda não. Recebeste várias chamadas.

Alguma coisa no seu tom de voz fez com que Isobel sentisse um nó de apreensão no estômago.

– Harry Thomason, suponho – disse, olhando para ele com o rosto imperturbável.

– Entre outros.

Só estavam os dois nos escritórios da Spence-Pierce Financial Consultants, Ltd, na cobertura do Comité em Kensington. Qualquer um que conseguisse contactar com eles devia ter uma boa razão para o fazer. Os assuntos mais corriqueiros eram tratados bem longe dali.

Isobel sentou-se na poltrona de couro à frente da secretária de Peter e cruzou as pernas. Tinha umas boas pernas para uma mulher de sessenta anos. Até mesmo para uma mulher de quarenta. E não estava nada mal para alguém da sua idade.

– Podes contar-me – disse, bebendo um gole de café. – Que eu saiba, nunca te mostraste especialmente sensível com as minhas mudanças de humor.

Peter desatou a rir-se, algo que Isobel começava a habituar-se lentamente. Tinham passado mais de dez anos desde que o conhecera até o ouvir rir-se pela primeira vez.

– A sensibilidade nunca foi o meu forte – disse.

– Thomason quer saber o que vais fazer com Serafín.

– Thomason pode ir para o inferno – respondeu ela, docemente. – Quem temos para o liquidar?

– Ninguém. Bastien fez um pouco do trabalho preliminar e eu também. A situação estabilizou e há coisas mais importantes que temos de fazer.

– Serafín, o Carniceiro – disse ela. Parecia que as coisas iam de mal a pior. – Achava que tinha desaparecido, tal como Gaddafi.

– Já vês que não. Só os bons morrem jovens e Josef Serafín não entra nessa categoria.

Isobel olhou para o seu escritório, desejando fe-char-se lá e apoiar a cabeça na sua secretária. E talvez esmurrá-la algumas vezes. Mas Peter estava a observá-la, a ler-lhe o pensamento. Era o problema de trabalhar com alguém como ele… Era suficientemente inteligente e intuitivo para saber o que pensava a toda a hora.

– Conta-me tudo – pediu ela. – Diz-me que vamos conseguir acabar com ele. Por favor.

– Receio que não possa fazê-lo. Vamos ter de salvar esse filho da mãe.

– Odeio este trabalho – disse Isobel, recostando-se na poltrona e fechando os olhos por um instante enquanto agarrava com força no copo. Peter conseguiria ver o menor tremor da sua mão. – Pormenores. Quero saber tudo sobre o Serafín e porque temos de o manter com vida. Encontrarei uma maneira de o liquidar.

– Duvido. Nem sequer Bastien conseguiu fazê-lo quando lhe ordenaste.

– Tinha-me esquecido… Dá-me os detalhes – voltou a pedir, num tom lento.

– Josef Serafín, quarenta e poucos anos. Ninguém sabe onde nasceu… possivelmente em alguma barraca da América do Sul. Apareceu pela primeira vez no final dos anos oitenta, numa operação de contrabando de armas no Congo. A partir daí, dedicou-se a ampliar horizontes. Fez parte de um cartel da Colômbia, livrou-se por pouco da rusga em Cartagena e começou a vender os seus serviços como assassino. Trabalhou para o Sendero Luminoso no Peru, para as Brigadas Vermelhas na Itália e esteve também na Croácia, na Somália e na Coreia do Norte. Não houve um só lugar conflituoso no mundo onde não tenha estado. Mais tarde, trocou o crime pela po lítica e transformou-se no braço direito de três dos ditadores mais desumanos da história moderna. Conseguiu escapar ileso mesmo antes de serem destronados e, durante os últimos cinco anos, esteve a trabalhar em África, a levar a cabo limpezas étnicas e políticas.

– Um encanto de homem – murmurou Isobel. – E temos de o salvar?

Peter não se incomodou em responder à pergunta.

– Actualmente, está escondido em alguma parte de Marrocos, mas não sabemos até quando poderá durar. Fez mais inimigos do que Bin Laden. A última pessoa para quem trabalhou foi Fouad Assawi, mas ele foi assassinado. O maior perigo é Vladimir Busanovich. Da última vez que Serafín trabalhou para ele estragou tudo. Pelos vistos, alguma coisa correu mal na última ronda de execuções e trezentos inimigos de Busanovich escaparam por causa de Serafín. Busanovich não é um homem muito tolerante.

– E temos de salvar Serafín porque…?

– Porque sabe tudo o que precisamos de saber sobre os maiores terroristas do mundo e está disposto a trocar essa informação por um bilhete para fora deMarrocos. É aí que nós entramos.

Isobel hesitou por um instante. Sempre poderia negar-se. Ao fim e ao cabo, era a chefe do Comité e tinha a última palavra. As ordens eram ditadas por um grupo misterioso de idosos na sombra, o verdadeiro «comité», a que se juntara Harry Thomason, o antigo chefe de Isobel. Gostaria de culpá-lo por aquela situação, mas Thomason sempre estivera disposto a eliminar qualquer pessoa com o menor pretexto e já há muito tempo que alguém devia ter liquidado Serafín. O próprio Thomason ordenara que eliminassem Serafín meia dúzia de vezes, mas ninguém, nem sequer Sebastian ou Peter, conseguira aproximar-se dele.

Até agora. Todos cometiam erros e Serafín não estaria a pedir asilo se não tivesse falhado nas suas ordens letais.

– Qual é o plano? – perguntou, afastando o seu cabelo loiro perfeito do rosto. – E não me digas que não tens nenhum plano… Conheço-te demasiado bem. Quem vamos enviar? Estamos com pouco pessoal e Genevieve cortar-me-ia a cabeça se te enviasse.

Peter voltou a surpreendê-la com outro dos seus sorrisos escassos e inesperados.

– E depois cortaria a minha. Pensei em Taka, mas ainda está a ocupar-se do assunto dos cultos no Japão. Além disso, não nos deram escolha.

Isobel arqueou uma sobrancelha, expectante.

– Querem que tu vás – disse Peter. – É uma ordem directa. Tens de ir a Marrocos, contactar com Serafín, tirá-lo de lá e trazê-lo para Londres.

– E depois?

Peter encolheu os ombros.

– Tem milhões poupados em alguma conta internacional. Passou os últimos vinte anos a oferecer os seus serviços ao melhor licitador… Assim que nos facilitar a informação, poderá desaparecer sem problemas. Com a nossa ajuda – acrescentou, sem que parecesse gostar muito do assunto. Isobel sentia o mesmo.

– Talvez possa sofrer um pequeno acidente depois de nos ter dado a informação – disse ela. – Os acidentes acontecem…

– Sim, acontecem com muita frequência – corroborou Peter. – Posso encarregar-me disso, se quiseres.

Isobel evitou o seu olhar. «Nunca peças aos outros o que não estás disposta a fazer.»

– Primeiro, vamos ver se conseguimos trazê-lo vivo. Sabemos que aspecto tem?

– Temos algumas fotografias da sua estadia na Bósnia, há oito anos, mas não mostram muito. Apenas um homem alto com barba e óculos de sol. Também contamos com algumas descrições recentes de pessoas que escaparam ao massacre. Reunirei tudo e veremos o que conseguimos.

– Tu e os teus malditos computadores – disse Isobel. Desde que se retirara do serviço activo, Peter passava o tempo a brincar com os últimos avanços tecnológicos. – Vê o que consegues arranjar.

– Há quanto tempo nos conhecemos?

A pergunta inesperada de Peter quase fez com que Isobel baixasse a guarda.

– Há quase dez anos. Porquê?

– Pareces cansada.

– Insinuas que aparento a idade que tenho? – per guntou ela.

– Não sei qual é a tua idade – respondeu ele. – Podes ter quarenta ou sessenta anos.

– Ou vinte ou oitenta – indicou ela. – Cuido-me muito bem e tive os melhores cirurgiões plásticos. Porque o perguntas?

– Porque mais cedo ou mais tarde torna-se demasiado difícil continuar. Ambos sabemos. E eu gostaria que me avisasses se vais ficar queimada.

– Achas que sou demasiado velha para este trabalho? Se queres assim tanto que me retire do serviço activo, far-te-ei ter conhecimento com antecipação quando considerar essa possibilidade. Por enquanto, ainda tenho muitos anos de trabalho pela frente.

– Bastien retirou-se antes de chegar aos quarenta anos.

– Certo. E suponho que, se não fosse por mim, tu também te terias reformado há muito tempo, não é?

– Vi o que este trabalho faz às pessoas. Transforma-as em monstros como Thomason ou con-some-as como…

– Como a mim.

– Como Bastien. Como a mim. Como a ti. Isobel levantou-se com a sua elegância habitual.

– Dir-te-ei o que podes fazer, Peter. Encontra um substituto que tenha consciência, procura outro para ti e, então, reformar-me-ei.

– Não podemos fazer este trabalho e ter consciência.

– É difícil. Mas a consciência é a nossa única salvação. Sem ela, transformar-nos-íamos noutro Thomason e vingar-nos-íamos tanto dos nossos amigos como dos nossos inimigos – dirigiu-se para o seu escritório. – Encontra o melhor homem que conseguires para Serafín.

– Já descarreguei os arquivos para o teu computador – disse ele e ficou em silêncio por um instante. – Eu podia ir.

– Não – rejeitou ela, taxativamente.

– E o primo de Taka, se alguma vez aparecer?

– Taka matar-nos-ia. Enviar alguém para o nortede África para procurar Serafín não é precisamente um jogo de crianças. Seria como pôr um cordeiro na guarida do lobo. Embora não pense que um parente de Taka se assemelhe a um cordeiro…

– Bastien…

– Não metas Bastien nisto. Achas que não consigo tratar disto? – perguntou, num tom ligeiramente brincalhão, mas não conseguiu arrancar um sorriso a Peter.

– Consegues fazer tudo, Isobel. Mas não sei se queres fazê-lo. Mudaste.

Ela pestanejou algumas vezes.

– Duvido. Continuo a ser a mesma profissional com o mesmo sangue-frio de sempre. Tu é que vês as coisas de outro modo desde que o verdadeiro amor te seduziu.

Peter não se incomodou em responder. Limitou-se a arquear uma sobrancelha e Isobel não quis discutir. Porque havia de perder tempo com mentiras? Em algum momento dos últimos cinco anos, a sua couraça começara a rachar-se. A sua força reduzira-se a uma ténue aparência sob a qual começavam a agitar-se emoções desgraçadas. A Rainha de Gelo começava a mostrar sinais de fraqueza.

Mas não ia discutir. Ia fazer o que tinha de fazer.

– Quanto tempo temos?

– Não muito – respondeu ele. – Muita gente quer a cabeça de Serafín. Quando mais depressa o tivermos, melhor.

Ela assentiu com firmeza.

– Sairei amanhã.

– Podes esperar alguns dias…

– Alguns dias não farão a menor diferença – disse ela. Nem sequer alguns anos. Tinha de se manter activa. Se permanecesse quieta durante muito tempo começaria a pensar, a sentir e, então, mais lhe valeria estar morta. – Amanhã.

Peter olhou para ela durante um bom bocado e, finalmente, assentiu.

– Encarregar-me-ei de preparar tudo.

Isobel fechou a porta do seu escritório, deixou-se cair na poltrona de pele e fechou os olhos. Precisava mais de um cigarro do que do ar que respirava, o que lhe pareceu irónico. Não ia deixar o tabaco para prolongar a sua vida… na sua profissão não tinha de se preocupar com a longevidade.

Não gostava da sensação de fraqueza nem de necessidade. Inclinou-se para a frente e consultou os arquivos que Peter descarregara para o seu computador. Uma fotografia granulada de Josef Serafín apareceu no monitor. Peter empenhara-se a fundo para limpar a imagem e torná-la mais nítida e, de repente, Isobel semicerrou os olhos. Aproximou-se do ecrã e sentiu um aperto no coração.

– Killian... – sussurrou e a escuridão abateu-se sobre ela.

Dois

Antes

Fora uma rapariga selvagem, com um cabelo desgrenhado de caracóis avermelhados, um carácter teimoso, um coração apaixonado e uma alma inocente. Com dezanove anos, pusera os seus pertences numa mochila, apanhara um voo barato até Londres e decidira pedir boleia para chegar a Cordon Bleu, a famosa escola de Culinária de Paris.

Em Vermont não havia ninguém com quem devesse preocupar-se. A sua mãe morrera muito jovem e o seu pai tinha uma nova família. Mary Isobel Curwen era apenas a lembrança de outra vida. Não lhes pertencia.

Não era uma rapariga imprudente, apenas uma ignorante. Se não tivesse decidido percorrer Inglaterra a pedir boleia antes de começarem as aulas, se tivesse esperado para ir com as suas amigas, se tivesse tido sensatez suficiente para não entrar nos bairros baixos de Plymouth a meio da noite… Se, se, se. Só agora que era mais velha e sábia é que conseguia vê-lo em perspectiva.

Naquela noite, não se apercebera de que alguém estava a segui-la. Um grupo de predadores silenciosos, mexendo-se na escuridão como uma alcateia de lobos famintos. Quando finalmente se apercebera de que não estava sozinha já era demasiado tarde. Arrastara a escória ao sair do pub e afastara-se demasiado da pousada de juventude onde deixara as suas coisas. Ouviu o toque de uma bota contra o chão, uma gargalhada abafada e um terror glacial apoderou-se dela. Chegou ao fim da rua e virou à esquerda com a intenção de se esconder nas sombras. Mas então descobriu que era um beco sem saída, iluminado pela lua cheia de Agosto.

E tinham-na apanhado lá. Um punhado de jovens, alguns deles ainda mais jovens do que ela, mas que não eram inofensivos. Bloquearam-lhe a saída e um milhão de pensamentos arrepiantes passou-lhe pela cabeça. Se desaparecesse, ninguém sentiria a falta dela. O seu pai já a esquecera e, embora as suas amigas em Vermont pudessem preocupar-se, seria demasiado tarde para receber qualquer tipo de ajuda.

Ninguém ia salvá-la. Ninguém sentiria a falta de la. Estava sozinha e ia morrer ou ficar gravemente ferida.

– Não tenho dinheiro – disse, tentando mostrar uma tranquilidade que não sentia.

– Não queremos o teu dinheiro – respondeu um deles, enquanto avançavam para ela. – Quem quer ser o primeiro?

– Eu – disse um dos mais jovens, um miúdo fracote com dentes partidos e uma expressão feroz nos olhos, levando as mãos ao cinto.

Isobel abriu a boca para gritar, mas no segundo seguinte todos estavam sobre ela, atirando-a para o chão cheio de porcaria, apalpando-a, aprisionando-a com os seus corpos. Por muito que tentasse debater-se, chutar e bater, não conseguira fazer nada para se libertar. Sentiu uma coisa cortante no pescoço e o jovem sorriu com lascívia.

– Não me importaria de te cortar o pescoço. Se quiseres sangrar enquanto te penetro, tanto me faz.

– Por favor – sussurrou ela, num tom voz agónico, sentindo a lâmina contra a pele. Umas mãos puxaram as suas calças de ganga e ela chutou com força. O seu pé chocou com alguma coisa e, a julgar pelo grito de dor, devia ter ser muito doloroso.

O rapaz que estava sentado sobre ela virou-se e resmungou como um cão raivoso e, por um instante, a pressão da faca aliviou. Isobel bateu-lhe na cabeça com a dela, tirou-o de cima e tentou levantar-se. Mas eram demasiadas mãos, demasiados corpos e sabia que não tinha escapatória.

– Afastem-se dela.

A voz era fria, com sotaque americano e tão ameaçadora que o grupo de adolescentes parou imediatamente.

O rapaz que a aprisionava afastou-se dela e estudou as sombras.

– Não sejas idiota… Somos sete contra um. Desaparece se não queres sofrer também.

– Afastem-se dela – voltou a dizer um homem. – Ou será pior para todos vocês.

– E o que vais fazer?

A cena que se seguiu foi frenética e difusa, como se decorresse num sonho. Houve um brilho de luz e o rapaz voou para trás, como se umas mãos invisíveis o tivessem levantado. Um instante depois ouviu-se um tiro, todos se afastaram a correr, desaparecendo nas sombras, e tudo ficou em silêncio.

– Estás bem? – perguntou-lhe o homem, surgindo da escuridão. À luz da lua parecia muito normal. Alto, com calças de ganga e t-shirt, uns cinco anos mais velho do que ela. Não era o tipo de pessoa que assustaria um grupo de violadores. Mas fizera com que todos fugissem. Salvara-a… Era um dos bons.

Estendeu-lhe uma mão, mas, por um instante, Isobel quis afastar-se dele. Estava a ser uma estúpida e aceitou a sua mão para permitir que a puxasse e a levantasse.

– Estás bem? – voltou a perguntar.

– Sim – mentiu. – Como conseguiste fazê-los fugir?

Era mais alto do que ela, magro e de aspecto inofensivo.

– O tubo de escape de um carro – respondeu ele, calmamente. – Devem ter pensado que tinha uma pistola.

Ainda a segurava pela mão e ela afastou-se com um puxão, repentinamente nervosa.

– Não vou fazer-te mal – garantiu ele, inclinando a cabeça para olhar para ela. Tinha uns óculos que lhe davam um ar intelectual. – De certeza que estás bem? Penso que devia levar-te a um hospital.

– Estou bem – respondeu ela, com mais firmeza. – Só preciso de voltar para a pousada.

– A pousada de juventude de Market Street? Levar-te-ei no meu carro.

Ela olhou para ele fixamente.

– Pensas mesmo que vou entrar no carro de um estranho, por muito inofensivo que pareça, mesmo depois de ter estado prestes a ser violada e assassinada? Achas que sou assim tão parva?

– Pareço inofensivo? – perguntou ele, num tom ligeiramente divertido. – Suponho que sou. Mas pelo menos consegui fazê-los fugir. E não sei se és tola ou não, mas é uma completa estupidez passear sozinha de noite por esta parte da cidade. Mesmo que não gostes, não vou deixar-te até estares a salvo na tua pousada, com as portas fechadas à chave.

– Não trancam as portas na pousada.

Ele olhou para ela em silêncio. À luz fraca da lua, Isobel não conseguia distinguir os seus traços. Só via uma figura alta e magra, quase raquítica, com o cabelo comprido e óculos. Inofensivo. Isobel conhecia bem as pessoas e sabia que não corria nenhum perigo com ele, de modo que conseguiu esboçar um sorriso forçado.

– Está bem – acedeu. – Podes levar-me à pousada de juventude de Market Street e afugentar os malfeitores. Ou podemos ir a pé. Não é longe.

– Se é isso que queres… E podias contar-me alguma coisa sobre ti. Por exemplo, porque não estás a sofrer um ataque de histeria depois de quase teres sido violada e assassinada.

– Sou uma pessoa prática e os ataques de histeria não me ajudarão. Esperarei até estar sozinha.

– Não há muita intimidade numa pousada de juventude.

Ela voltou a levantar o olhar para ele.

– Parece que te preocupas muito com as minhas reacções.

– Eh, não é todos os dias que se salva uma rapariga em apuros. É normal que me preocupe – o seu tom parecia natural e despreocupado e as luzes da rua reflectiam-se nos vidros finos dos seus óculos quando saíram do beco.

Isobel afastou uma madeixa do rosto.

– Não sou uma rapariga em apuros. Sou uma estudante a caminho da Cordon Bleu em Paris e posso cuidar de mim própria.

– Estou a ver. As aulas só começam dentro de três semanas. O que fazes a viajar sozinha por Inglaterra?

A inquietação que quase a abandonara voltou a invadi-la.

– Como sabes quando começam as aulas na Cordon Bleu?

– Vivi vários anos em França e estou prestes a regressar. Estudo numa pequena academia de arte em Paris e queria percorrer um pouco do país antes de voltar. Qual é a tua desculpa?

O medo desapareceu por completo.

– Tencionava fazer o mesmo. Disseram-me que era seguro pedir boleia na Europa.

– Não quando se tem o teu aspecto.

Era um simples comentário que não se aproximava de um elogio, por isso Isobel não soube como responder. Verificou, espantada, que já tinham chegado à pousada, onde uma luz amarela iluminava a porta principal.

– Obrigada pela tua ajuda – disse, estendendo-lhe a mão.

Ele olhou para ela por um instante com um sorriso sarcástico. À luz da porta Isobel conseguiu vê-lo melhor. Tinha o cabelo preso com uma fita de couro e tinha um rosto austero cujo único traço destacável era os seus lábios, bonitos e carnudos.

Segurou na mão dela e fez uma reverência exagerada.

– Ao teu serviço. O meu nome é Killian.

– É o teu nome ou o teu apelido?

– Escolhe. O meu nome é Thomas Henry Killian Saint Claire, mas o resto não me interessa muito. E o teu é…?

– Mary.

Ele esperou pacientemente, segurando-lhe a mão.

– Mary Isobel Curwen – disse ela, finalmente, afastando a mão.

– Muito bem, Mary Isobel Curwen. Foi uma honra poder servir-te. E se quiseres que te leve a França, avisa-me.

– Não me parece. Posso tratar disso sozinha.

– Certamente. Estarei no ferribote amanhã de manhã. Tenho um Citroën cor de laranja amolgado. Se quiseres que te leve, só tens de aparecer. Não ha-verá nenhum compromisso. Tenho uma namorada em França que me mataria se me atrevesse a olhar para outra mulher. Só estou a oferecer ajuda a uma compatriota.

– Não preciso dela.

– Como queiras. Apanharei o ferribote das dez em ponto. Enquanto isso, afasta-te dos becos escuros, está bem? Na França também há muitos.

– Fá-lo-ei.

Quase esperara que continuasse a discutir, mas ele afastou-se pela rua deserta, com as mãos nos bolsos e uma atitude de despreocupação total.

Isobel observou como se afastava. Tudo parecia tão irreal que quanto mais depressa entrasse no duche e se deitasse, mais depressa conseguiriaesquecê-lo. Às dez da manhã ele estaria a caminho de França e ela não voltaria a vê-lo.

Às dez em ponto do dia seguinte estava sentada ao seu lado no velho Citroën cor de laranja, a entrar no ferribote e a perguntar-se se perdera o juízo.

Era uma fraqueza que Killian não podia permitir-se. Estava de passagem por Plymouth, a tentar procurar uma boa cobertura para chegar até França e completar a sua missão e o ruído que ouvira no beco não lhe dizia respeito. Há muito tempo que aceitara que não podia salvar o mundo.

Mas alguma coisa, possivelmente a maldita sorte que o acompanhava sempre, fizera-o virar-se e voltar para o beco a tempo de impedir que uns ratos de esgoto violassem alguma turista estúpida.

Abrira fogo uma vez. Podia ter-se livrado deles sem necessidade de usar a arma, mas a imagem odiosa daquelas crianças irritara-o tanto que disparara um tiro no ar. Todos tinham fugido, incluindo o que o desafiara, e irritara-se ainda mais por não o ter matado. Depois, concentrara a sua atenção na mulher.

Adoptando a sua melhor cortesia americana, estendera-lhe uma mão para a levantar. Era muito leve e parecia um pouco transtornada. Apenas uma mulher idiota que se enganara no lugar e na hora.

Também era muito bonita, embora ele não estivesse de humor para reparar nesses detalhes. Tinha um cabelo avermelhado de caracóis despenteados enunca gostara de ruivas. À luz da lua conseguira ver que tinha uns olhos incrivelmente azuis, quase turquesas e o tipo de boca que faria a maioria dos homens perder a cabeça.

Mas ele não. Talvez interpretar o papel de sir Galahad não tivesse sido uma tolice, afinal de contas. Ela podia oferecer-lhe a cobertura perfeita. Ninguém estaria à procura de um casal de estudantes americanos a caminho de França.

Dissera o que tinha de dizer e ela acreditara com convicção. Não podia culpá-la por ser tão ingénua, quase ninguém conseguia ver o lobo que espreitava sob o seu aspecto de cordeiro.

Não ia ser capaz de seguir o caminho fácil e ir para a cama com ela. A melhor maneira de conseguir fazer com que uma mulher fizesse o que queria era mediante o sexo, mas Mary Isobel Curwen estivera prestes a ser violada. Passaria algum tempo até querer ter intimidades com um homem. Além disso, o sexo tornava as mulheres possessivas ou, pelo menos, curiosas. E a curiosidade era um estorvo indesejável no seu trabalho.

Mas uma amizade platónica e segura era outro assunto e ela aceitara-o sem hesitar. Fora muito simples. Só precisara de lhe mostrar a dose adequada de encanto assexual e de promessas reconfortantes para a ter sentada ao seu lado, num carro amolgado que escondia um motor capaz de superar o melhor Ferrari.

O mar estava encrespado e o vento soprava com força, mas a sua companheira demonstrou ter um estômago à prova de bala e permaneceu na coberta, com os seus cabelos de fogo açoitados pelo vento e um brilho de vitalidade nos seus olhos azuis. Outro ponto a seu favor… Não se assustava facilmente, nem com travessias difíceis nem com grupos de violadores. Desde que se mantivesse dócil, tudo correria bem.

Mas não era a companheira perfeita, nem nada parecido. Se Killian pudesse escolher, teria escolhido alguém mais discreto, alguém com o cabelo escuro, menos complicado, que aceitasse uma relação sexual sem compromisso. Killian gostava de sexo, mas nunca permitiria que se misturasse no seu trabalho e alguém como Mary Curwen exigiria mais do que uma aventura rápida. Envolver-se-ia emocionalmente e poria toda a missão em risco.

Teria sido muito melhor se não fosse tão inteligente. Aquele fora o primeiro erro… pensar que uma estudante de Culinária seria uma ameaça menor do que alguém que estudasse na Sorbonne. Só porque cometera a imprudência de passear sozinha de noite não significava que não tinha uma mente aguda. Killian teria de ter muito cuidado.

Pensar que seria fácil resistir à tentação foi o segundo erro. E não sabia qual dos dois era pior.

Mas Killian era um homem que aceitava tudo o que lhe ofereciam e tirava o maior partido disso. Mary Isobel Curwen, estudante americana, caíra inesperadamente nos seus braços e ele estava disposto a aproveitar-se ao máximo.

Faltavam duas semanas até ao seu compromisso em Marselha. Duas semanas para percorrer França e oferecer uma imagem inocente face a qualquer pessoa que o procurasse. Sem dúvida, eram muitos os que queriam eliminá-lo antes de conseguir levar a sua missão a cabo.

Trabalhava sempre sozinho… ninguém suspeitaria que uma mulher o acompanhava.

Duas semanas para manter a sua identidade e a sua missão em segredo de uma mulher infelizmente sagaz e sem poder recorrer ao sexo para a distrair. Duas semanas que iam ser muito, muito longas.

Mas, no fim, valeria a pena. Iria ao seu compromisso, completaria a sua missão e, depois, desapareceria e ela nunca saberia que o seu amigo americano encantador acabara de assassinar o general Etienne Matanga, a maior esperança para alcançar a paz nu ma pequena nação africana.

Isobel nunca soubera porque acordara cedo naquela manhã, pusera as suas roupas e livros na mochila e se dirigira rapidamente para o ferribote. Não lhe custara encontrar o Citroën e Killian apoiado nocarro, à espera de alguma coisa. À espera dela. Levantara o olhar quando ela se aproximara e limitara-se a abrir a porta traseira para que pusesse a mochila.

– Tenho um recipiente térmico de café – disse, como único cumprimento. – Café quente, puro como os anjos e doce como o amor.

– Eu não gosto de açúcar – respondeu ela.

Ele encolheu os ombros.

– Bom, se vamos viajar juntos teremos de chegar a um acordo. Ainda que, na verdade, não tenha muito açúcar.

– Não tinhas dito «doce como o amor»?

– O amor pode ser agridoce, não achas?

Ela abriu o recipiente térmico e serviu um pouco para o provar.

– Não acredito no amor de maneira nenhuma – disse. O café era bom e só estava ligeiramente açucarado. – E quem disse que vamos viajar juntos?

– Isso depende de ti. Tenho duas semanas até começarem as aulas. A minha namorada está em Berlim numa sessão de fotografias e eu vou percorrer o sul de França de carro. Também tens algumas semanas de férias e podias vir comigo sem que houvesse nenhum compromisso. Talvez até renuncie ao açúcar no meu café se pagarmos a gasolina a meias.

– A tua namorada é fotógrafa?

– Modelo.

Não havia resposta mais convincente. Nenhum homem que tivesse uma modelo como namorada poderia ter motivos escondidos com uma ruiva como Mary Curwen. E o que dizia era verdade. Ela tinha mais três semanas até ocupar o apartamento económico que esperava por ela e a diversão de viajar sozinha desaparecera na noite anterior no beco.

– Tens sorte... – murmurou.

Ele desatou a rir-se.

– Eh, e ela não tem sorte?

Tinha razão, pensou ela. Agora que conseguia vê-lo à luz do dia tinha de reconhecer que era muito atraente. Mais do que atraente. Media mais de um metro e oitenta, tinha umas pernas compridas tapadas por umas calças de ganga desgastadas, um rosto com olhos verdes e brilhantes… E era comprometido.

– Ela também tem sorte – corroborou com um sorriso. – Dar-te-á filhos muito bonitos.

– Isso se alguma vez conseguir convencê-la a estragar a sua figura – disse ele, com um gemido. – Tens o teu passaporte à mão?

– Claro.

– Dá-mo mim. Será mais rápido se pensarem que estamos a viajar juntos.

Não havia nenhuma razão para que aquele pedido a incomodar, mas, mesmo assim, sentiu-se um pouco incomodada. No entanto, deu-lhe o passaporte azul-marinho e ele respondeu com um sorriso quente.

Não havia nada para recear, pensava. Era um americano que procurava companhia e alguém que partilhasse os gastos da gasolina e ela não tinha mais nada para fazer nas próximas semanas.

Portanto, retribuiu o sorriso.

– Muito prático – disse, enquanto ele guardava o seu passaporte no bolso, e bebeu outro gole de café, sossegando as suas dúvidas.

Acabara de cometer o pior erro da sua vida.

Três

Agora

O sol de Marrocos era uma mudança abrasadora depois de abandonar os céus escuros e chuvosos do Inverno londrino. Isobel conduzia velozmente pela estrada cheia de buracos. Tinha um bom sentido de orientação, coisa que lhe salvara a vida numerosas vezes e sabia que chegaria ao seu destino ao anoitecer. Tentava ignorar o facto de não querer chegar. Não estava pronta para enfrentar o que a aguardava numa aldeia norte-africana minúscula à entrada do deserto.

Pelo menos, ele não tinha a menor ideia de quem era Isobel Lambert. Isobel não sabia como Killian sobrevivera naquela noite, mas fora assim, por isso ele também devia pensar que ela morrera. Teria esquecido tudo sobre a jovem ingénua que usara e tentara matar, apesar de ter sido ela a disparar. E nunca conseguiria relacionar Isobel Lambert com a rapariga louca com quem passara duas semanas. Transformara-se numa mulher fria, elegante e desalmada, depois de ter sufocado os seus desejos e emoções ao longo dos anos. Depois do choque inicial de o reconhecer, conseguia pensar na sua missão com neutralidade. Josef Serafín ficaria fora de jogo e o mundo seria um lugar mais seguro sem ele.

O sol açoitava-a sem piedade no veículo descapotável, mas aquele jipe fora o meio mais rápido que conseguira encontrar e nem sequer um carro blindado conseguiria protegê-los se alguém conseguisse seguir o seu rasto.

Os pneus levantavam uma nuvem de pó no caminho, mas no trajecto de sete horas desde Agadir só vira alguns pastores de ovelhas e alguns acampamentos nómadas. Existia a possibilidade de estarem a segui-la por satélite, mas não podia fazer nada para o evitar. Killian… Serafín… estava escondido numa aldeia deserta na fronteira com a Argélia e havia tantos problemas na região que Isobel esperava que conseguissem escapulir-se sem chamar a atenção. Nunca começava uma missão sem estar convencida da sua viabilidade. Tiraria Josef Serafín de Marrocos e levá-lo-ia para Londres são e salvo, sem importar quantas pessoas queriam cortar-lhe a cabeça… incluindo ela.

O sol começava a esconder-se quando chegou aos subúrbios da aldeia de Nazir. Um calafrio percorreu-lhe a pele. O calor tórrido do dia dava lugar ao frio nocturno gélido.

Pelo aspecto da aldeia, parecia que estava desabitada há décadas. As portas estavam fechadas, com a pintura azul envelhecida, as ruas poeirentas e desertas… Por um instante, questionou-se se se enganara no lugar. Os seus informadores teriam falhado? Seria uma armadilha?

Não, não era uma armadilha. O seu instinto dizia que Killian era o pior que a esperava na aldeia abandonada. Embora não soubesse se havia uma ameaça maior.

Parou o jipe junto das ruínas de uma velha mes-quita e saiu para esticar as pernas, dando a imagem de uma turista extraviada no caso de encontrar algum nativo desconfiado.

Pensou que devia ter ido disfarçada, de alguém mais jovem, de modo a fazer com que a história de se ter perdido a caminho da Mauritânia fosse mais credível. Mas uma jovem excêntrica e louca parecia-se demasiado com a mulher que Killian conhecera. Ele não conseguiria reconhecê-la, mas ela saberia e sentir-se-ia vulnerável.

Começou a andar pela rua deserta. Tinha uma faca no tornozelo, uma pistola nas calças e contava com a sua habilidade para matar rápida e silenciosamente com as suas próprias mãos. Ninguém lhe tocaria…

– Eh, senhora!

A voz infantil surgiu do nada e Isobel deu um salto como um gato assustado. Ficou tão espantada com o aparecimento repentino da criança que nem sequer tirou a sua pistola. Felizmente… já que para qualquer observador escondido ela era apenas uma turista ingénua que estava no lugar errado no momento errado.

– Senhora – disse a criança. Vestia-se com farra-pos e não devia ter mais de seis anos, mas os seus olhos eram os de um idoso. – Venha, senhora.

– Para onde? – perguntou ela, vendo a arma que o menino tinha. Uma velha AK-47 russa. Não era a primeira vez que encontrava soldados daquela idade, mas sentia-se sempre incomodada ao ver uma arma tão pesada numas mãos tão pequenas.

– Venha, senhora! – voltou a ordenar a criança, usando todo o inglês que parecia saber.

Ela tocou na pistola que tinha escondida na cintura, só para se recordar que continuava a tê-la, e seguiu a figura minúscula pelas ruas desertas. Killian devia pagar melhor aos seus mercenários, pensou. Aquele menino era muito magro e apenas se mantinha de pé por causa da porcaria que o cobria dos pés à cabeça.

Passaram junto de várias construções ruídas, algumas sem tecto e com a tinta azul das portas ressequida devido ao sol ardente do deserto. Isobel ouvira dizer que o azul repelia os mosquitos. Por sorte, não parecia haver mosquitos por ali. Odiava os insectos de todo o tipo. Era uma das muitas razões pelas quais vivia em Inglaterra.

O sol era um disco alaranjado no horizonte e começavam a ver-se as estrelas a este. Deixara a sua lanterna no carro… Certamente, não fora boa ideia, mas quisera ter as duas mãos livres, embora ainda não soubesse para quê.

A criança parou junto de uma das casas maiores. Não tinha janelas nas paredes exteriores, por isso, certamente, contava com um pátio interior. A porta pendia de uma dobradiça e tudo estava em silêncio.

– Entre, senhora – disse o rapaz, apontando para ela com a arma.

Isobel olhou para ele durante alguns segundos e fez a única coisa que podia fazer. Entrou na casa.

Um homem estava de pé no extremo oposto do pátio. Uma silhueta recortada contra o céu escuro. Isobel avançou, mantendo-se nas sombras. Desde que o reconhecera na fotografia, não sentira nada. Absolutamente nada.

– Onde está Bastien Toussaint? – perguntou a figura.

A sua voz era a de um desconhecido, uma mistura de sotaque australiano, sul-africano e espanhol. Não se parecia nada com a voz profunda e suave de Killian.

– Reformou-se – disse ela, entrando no pátio. – Vim no seu lugar.

– E quem te enviou?

– Eu própria. Sou Isobel Lambert, chefe do Comité.

Madame Lambert em pessoa? Deve estar muito interessada em mim… – disse ele, num tom brincalhão.

Isobel hesitou. Ter-se-ia enganado? A fotografia que vira não era de confiança. Talvez tivesse sofrido uma alucinação. Peter dissera-lhe que trabalhava demasiado e que estava a consumir-se como todos naquele trabalho que acabavam queimados ou mortos.

Estaria a ver um homem morto? Ou o stress ter-se-ia embargado finalmente dela e tê-la-ia feito ver coisas que não eram reais?

– Tem uma informação muito valiosa, senhor Serafín – disse, sem que a sua voz denunciasse nada. – Oferecemos-lhe a possibilidade de nos entregar a informação em troca da sua vida. Se não valesse a pena, não hesitaria em acabar consigo.