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Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

Recorda-me

Título original: Recuérdame

© 2019, Mario Escobar

© 2019, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.

Tradutor: Fátima Tomás da Silva

 

Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.

Desenho da capa: Kara Klontz Design

Imagens da capa: © Galya Ivanova | Trevillion Images;

Vasya Kobelev and OnFocus | Shutterstock

1ª edição: Novembro 2019

 

ISBN: 978-84-9139-447-1

 

Conversión a ebook: MT Color & Diseño, S.L.

Índice

 

Recorda-me

Introdução

Prólogo

Parte 1. Uma bomba na minha janela

Capítulo 1 A rusga

Capítulo 2 María Zapata

Capítulo 3 A Vitória

Capítulo 4 O quartel da montanha

Capítulo 5 Nas trincheiras

Capítulo 6 Os meus amigos não vão para o céu

Capítulo 7 Os meus avós e a viagem para San Martín de la Vega

Capítulo 8 A chuva de palavras

Capítulo 9 A caminho de França

Capítulo 10 Bordéus

Parte 2 O Mexique

Capítulo 11 Separação

Capítulo 12 À caça do menino vermelho

Capítulo 13 Um minuto antes

Capítulo 14 O sofrimento proibido

Capítulo 15 Na cama

Capítulo 16 Havana

Capítulo 17 Veracruz

Capítulo 18 Cidade do México

Capítulo 19 Uma cidade da província

Capítulo 20 O incidente

Parte 3 Morelia

Capítulo 21 A história de uma viagem

Capítulo 22 Fome e bichos

Capítulo 23 A família

Capítulo 24 O castigo

Capítulo 25 A visita do presidente

Capítulo 26 O verão

Capítulo 27 Más notícias de Espanha

Capítulo 28 Os ratos brancos

Capítulo 29 Desaparecida

Capítulo 30 Deportação

Parte 4 O campo de concentração

Capítulo 31 A fuga

Capítulo 32 Os amigos franceses

Capítulo 33 A viagem para a capital

Capítulo 34 O comboio para a Alemanha

Capítulo 35 Um barco para a pátria

Capítulo 36 Cruzamento de caminhos

Capítulo 37 Regresso

Capítulo 38 Espanha

Capítulo 39 O campo de concentração

Capítulo 40 Separados

Parte 5 O orfanato

Capítulo 41 Paracuellos

Capítulo 42 O inferno

Capítulo 43 Mentiras

Capítulo 44 O governador

Capítulo 45 Em nome do pai

Capítulo 46 Últimos dias em casa

Capítulo 47 Madrid

Epílogo

Algumas elucidações históricas

Cronologia

Agradecimentos

Ilustrações

 

 

 

 

 

 

«Choro porque, sendo muito espanhol e muito mexicano, sinto que, afinal, fiquei sem identidade.»

— Emerio Payá Varela

Los niños españoles de Morelia

 

«Para a menina que partilhou a fome e o frio, os sapatos velhos e a roupa quase esfarrapada, o medo e o silêncio dos mais velhos, nos tristes anos quarenta…»

— Laura Falcón

 

«Machado ensinou-nos que o riso era, sem dúvida, uma das poucas fontes de vitalidade para o ser humano, que o humor era um dos grandes aliados da cordialidade e, portanto, da solidariedade.»

— Francisca Aguirre

Recorda-me

 

 

 

 

 

 

Para os meus filhos, que são de idades parecidas com as destas Crianças de Morelia, que a vida não os leve ao exílio e que, se o fizer, sejam tão valentes como as crianças republicanas da Guerra Civil foram.

Para a Elisabeth, a minha esposa amada, a minha pátria e a minha bandeira.

Para a minha avó Ponciana e para o meu avô Tomás, que sofreram nas garras da guerra e do ódio entre irmãos.

Para a minha mãe, Amparo, que verteu tantas lágrimas por causa dos sonhos perdidos e semeou o meu coração de estrelas.

 

 

 

 

 

 

«Há homens que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis.»

 

— BERTOLT BRECHT

Introdução

 

 

 

 

 

«Um livro emocionante, tremendamente humano e real, que descreve as peripécias de um grupo de crianças num barco até à sua chegada ao México. A ajuda do povo do México e do presidente General Cárdenas del Río às crianças republicanas foi um grande exemplo num momento tão turbulento da História.»

 

A guerra civil espanhola foi um rio de lágrimas e sangue. Pode parecer-nos que qualquer guerra é terrível, mas quando é entre irmãos, um conflito bélico transforma-se numa verdadeira tragédia, já que as feridas ficam abertas durante décadas e nunca chegam a cicatrizar por completo. Não há guerras justas! As vítimas são sempre as mesmas, a população civil, as pessoas que não desejavam lutar e que se viram obrigadas a morrer ou perderam os seus entes queridos no meio da barbárie e da brutalidade do conflito, que serviu de ensaio para a Segunda Guerra Mundial.

O golpe de estado de 17 de julho de 1936, que sucedeu numa guerra comprida e ensanguentada, começou como uma festa. Assim o contava don Juan Ramón Jiménez numa carta lida em Nova Iorque nesse mesmo verão, em busca de apoio a favor da República:

«Madrid foi, durante estes primeiros meses de guerra, eu vi, uma festa trágica e louca. A alegria, uma alegria estranha de uma fé ensanguentada, existia por todo o lado; a alegria do convencimento, a alegria da vontade, a alegria do destino favorável ou adverso.»

A festa acabou depressa, assim que o povo compreendeu, com as lições duras das bombas e das balas, que o que estavam a arrebatar-lhes era o futuro.

Antonio Machado percebeu imediatamente que a Guerra Civil era muito mais do que um conflito entre espanhóis e, por isso, disse:

«A Guerra Civil, tão eticamente desigual, mas entre espanhóis, acabou há muitos meses. Espanha foi vendida ao estrangeiro por homens que não podem chamar-se espanhóis… Com sorte, já não há mais do que uma Espanha invadida… pela cobiça estrangeira.»

Para mim, escrever este livro foi uma viagem comprida e difícil, tanto interior como exterior. Desde a minha infância, fui marcado pela Guerra Civil. Os meus pais foram crianças da guerra e os meus avós sofreram muito no conflito, em especial os maternos. O meu avô Tomás Golderos lutou e desapareceu na frente, deixando quatro crianças órfãs e a esposa viúva, que sofreu a dura repressão franquista. As consequências do conflito impressionaram-me tanto na minha infância que, todos os anos, durante a Véspera de Ano Novo, orava para que nunca mais houvesse uma Guerra Civil em Espanha.

Recorda-me é a história de três irmãos que, enviados pelos pais para o México com a esperança de, no fim da guerra, voltarem a reunir-se com eles, terão de enfrentar o caminho perigoso do exílio. É a história de milhares de crianças que deixaram a sua terra para nunca mais voltar, mas que, além disso, tiveram de abandonar o seu lar, essa pequena pátria que a nossa família é para todos. É também a história de crianças que se encontraram sozinhas e perdidas no mundo, sem ninguém que as abraçasse ou lhes indicasse o caminho que deviam seguir.

Recorda-me é a história coletiva das Crianças de Morelia. 456 crianças menores de idade, de entre cinco a doze anos, enviadas de Espanha para o México, para tentar fugir dos estragos terríveis da guerra. As crianças viajaram em condições muito difíceis durante uma travessia comprida até Veracruz no verão de 1937. O Comité Ibero-americano de Ajuda ao Povo Espanhol organizou tudo para tirar as crianças do país. As senhoras Amalia Solórzano e a esposa do presidente Cárdenas, Carmela Gil de Vázquez, foram as impulsionadoras do projeto.

A aventura de Marco, Isabel e Ana Alcalde é, no fundo, uma homenagem às Crianças de Morelia, mas também às crianças das guerras na União Soviética, na Bélgica, no Reino Unido, em França, na Argentina e no Chile, que tiveram de deixar o que mais amavam, os pais, em muitos casos para sempre.

Recorda-me pode parecer um livro de perdedores que tiveram de deixar tudo para fugir, mas é, acima de tudo, uma homenagem aos exilados de todas as guerras e àqueles que perderam a sua pátria por causa da barbárie da violência humana.

Prólogo

 

 

 

 

 

Madrid, 20 de junho de 1975

 

Naquele dia, recebi uma carta do México que me fez tremer, como se as lembranças da viagem emocionante e triste que fiz na minha infância regressassem para me recordar que, no fundo, não pertencia a lado nenhum. Limpei as lágrimas com o punho da camisa e olhei para o nome do remetente: María Soledad de la Cruz. Aquela menina roubara-me o coração há quase quarenta anos. Durante muito tempo, tentara convencer-me de que era espanhol. Que aquele tempo no México fora uma espécie de sonho de que acordei com tanta brusquidão como do estrondo que as bombas causavam sobre Madrid na primavera de 1937. Habituara-me de tal forma ao país a preto e branco que os franquistas tinham governado, como se se tratasse de um quartel, durante quase quarenta anos, que as lembranças vividas em Veracruz, na Cidade do México e em Morelia eram simples fantasmas longínquos e imaginários, como as visões loquazes de Dom Quixote no seu leito de dor, depois de murarem a entrada da sua biblioteca. Durante aquele tempo, refizera a minha vida e dedicava-me a um ofício que amava e que herdara do meu pai, o de impressor, mas, de alguma forma, a Guerra Civil, que arrebatara a existência, o dinheiro ou a saúde de muitos, arrebatara-me o futuro.

Pensei nos olhos de María Soledad de la Cruz que continuavam a iluminar aqueles anos perdidos como eclipses. Tão negros que a luz parecia desaparecer nas suas pupilas, para regressar pelos seus lábios carnudos até ao primeiro beijo furtivo à porta da escola de Morelia.

Abri o envelope e li aquela carta breve com um nó na garganta. Depois, olhei para a fotografia pequena a preto e branco que parecia esconder-se dentro do envelope cor de mostarda. Era a mesma menina de tranças pretas e dentes perlados, a que me roubou o coração e que me recordava mais uma vez que, sendo muito espanhol e muito mexicano, no fim, ficara sem pátria. Mais uma vez, não podia esquecer. Era obrigado a recordar, como a minha mãe me disse naquele dia em Bordéus, o último da minha antiga vida e o primeiro de uma aventura que nunca teria imaginado.

Parte 1

Uma bomba na minha janela

 

Capítulo 1

A rusga

 

 

 

 

 

 

Madrid, 14 de novembro de 1934

 

Para as crianças, a guerra é sempre como um jogo. Não têm a noção de que, por trás dos tiros e dos uniformes, dos desfiles e das canções entusiastas, a morte se cola como o lodo nos sapatos, deixando um rasto de sangue e carne, marcando para sempre a vida daqueles em que toca com o seu dedo infernal.

A Guerra Civil Espanhola começou muito antes de os militares se rebelarem no dia 17 de julho de 1936. Pelo menos, para nós, os filhos da pobreza e da miséria.

Naquela manhã, ouvi as pancadas na porta da nossa casa no bairro de La Latina bem cedo. Ainda estávamos todos na cama, as minhas duas irmãs, os meus pais e a rapariga que cuidava de nós enquanto a minha mãe trabalhava no teatro. De uma forma instintiva, as minhas irmãs e eu corremos para o quarto dos nossos pais. Isabel, com a sua camisa de noite branca de algodão, tremia e gritava enquanto abraçava a minha mãe. Ana chorava nos meus braços, enquanto o meu pai disfarçava o seu medo e nos dizia que não ia acontecer nada.

María Zapata, a rapariga que tínhamos em casa, chorava enquanto seguia o meu pai até à porta como um cachorrinho assustado. O resto da família ficou fechado no quarto principal, mas, quando ouvi as vozes e os golpes no corredor, deixei a minha irmã mais nova ao colo da minha mãe e, sem pensar duas vezes, dirigi-me para a porta. Não era muito valente, mas queria ajudar o meu pai. Ainda estava na idade em que o progenitor é o herói mítico e invencível que desejamos imitar. A tremer, espreitei para a soleira da porta do pequeno quarto a que todos chamávamos escritório, que era apenas uma divisão de dois por três metros, forrada de livros e com imensos papéis por todo o lado. Aquela sala, apesar de ter as paredes velhas e estantes lascadas, era o templo sagrado da sabedoria, ainda que, naquele momento, parecesse a entrada de Hades. Os papéis voavam enquanto as mãos enluvadas da Brigada Social tiravam os livros de lombadas de cores vivas das prateleiras. Quase todos eram exemplares da Editora Cervantes que, apesar de ter base em Barcelona, a imprensa do meu pai fabricava às vezes. O meu pai levantava as mãos, desesperado, e parecia que cada livro rasgado e cada papel amarrotado lhe doía como uma chicotada nas costas.

— Aqui, não temos livros ilegais!

A voz do meu pai interrompeu o estrondo das botas militares e os gritos dos polícias, até o sargento se virar e lhe dar um murro diretamente na boca. Depois, o sangue começou a emanar do lábio rasgado e olhei, horrorizado, para o olhar assustado do homem que imaginava ser o mais valente do mundo.

— Vermelho de merda! Sabemos que és um dos líderes sindicais do grémio de impressores! No dia 5 de outubro, foste um dos que assaltaram o Ministério do Governo e fazes parte do Comité Revolucionário Socialista. Onde estão os malditos livros? Queremos os papéis do sindicato e os nomes dos membros do comité!

O sargento sacudiu o meu pai que, vestido com o seu pijama às riscas, parecia uma marioneta entre as mãos dele. Sabia que os livros de que falavam não estavam ali. Há alguns dias, ajudara o meu pai a escondê-los no pombal que tínhamos no terraço do edifício.

— Sou um trabalhador honrado e leal à República — respondeu o meu pai, com mais aprumo do que esperava. O colarinho do pijama e parte do peito estavam cobertos de sangue, mas os seus olhos tinham recuperado a coragem que guiava cada um dos seus passos.

O sargento deu-lhe um murro forte no estômago e o meu pai dobrou-se para a frente. Depois, empurrou-o para um lado e os guardas bateram-lhe com os seus cassetetes até cair ao chão, gritando e abanando os braços como um homem a afogar-se que procura ar no fundo do oceano.

— Menino! Vem comigo — indicou o sargento e, pela primeira vez, reparei na sua cara.

Parecia um cão raivoso a babar-se. O seu bigode preto e espesso fazia-o parecer mais feroz. Puxou-me pela lapela e tirou-me do escritório à força. Arrastou-me até à sala e empurrou-me para uma cadeira. Sentei-me e o homem baixou-se, colando a sua cara à minha.

— Olha, menino, o teu pai é um vermelho, um comunista, um inimigo da paz e da ordem. Se nos disseres onde estão os papéis, não vai acontecer-te nada, mas se nos mentires, as tuas irmãs e tu acabarão no Orfanato do Sagrado Coração. Queres que rapem o cabelo à tua mãe e a ponham numa cela da prisão de Las Ventas?

— Não, senhor — respondi, tremendo, e com uma vontade terrível de urinar.

— Então, conta-me tudo antes que se esgote a minha paciência — declarou o homem, continuando a babar-se.

— O meu pai não tem mais livros senão esses. É impressor, sabe, e é por isso que há tantos em casa.

O homem sacudiu-me com força, levantou-me pelas lapelas e os meus pés ficaram a agitar-se no ar por um instante, antes de me deixar cair com força no chão. Depois, virou-se e dirigiu-se novamente para o escritório a passos largos.

— Vamos! Vamos levar os senhores! — gritou, com ironia.

— O que fazemos com os pirralhos? — Ouvi que perguntava um dos seus homens.

— Para o orfanato, que se encham de piolhos e bicharada.

Corri para a entrada da sala. Um dos polícias tirava a minha mãe do quarto à força. Precipitei-me sobre ele, agarrei-o pelo pescoço e comecei a morder-lhe o lóbulo de uma orelha. O tipo soltou a minha mãe e começou a gritar e a tentar escapar.

— Por favor, Marco! — exclamou a minha mãe, assustada, ao ver-me atrás do polícia.

O homem conseguiu livrar-se de mim e empurrou-me contra a parede. Tirou o cassetete e estava prestes a bater-me quando a minha mãe o agarrou pelo braço.

— É um pirralho, não o magoe — suplicou, entre lágrimas.

O sargento apareceu ao fundo do corredor, enquanto dois dos seus homens arrastavam o meu pai, que tinha o rosto arroxeado e coberto de sangue, os olhos inchados e gemia de dor. As minhas duas irmãs mais novas correram para ele, mas o sargento afastou-as com o braço.

— Agarra esse maldito menino — replicou, enquanto abria caminho, mas antes de conseguirem apanhar-me, abri a porta da rua e fugi a correr pela escada.

A última coisa que ouvi enquanto corria foi a voz de um dos polícias e os gritos da minha mãe que enchiam as escadas do prédio, como os relâmpagos de uma tempestade, antes de começar um choro apagado. Enquanto corria pela rua ainda às escuras, sentia uma dor forte no peito. Não parei até chegar à Plaza Mayor, onde alguns varredores limpavam o chão pavimentado com as suas mangueiras. Apoiei-me numa das colunas da praça e chorei amargamente. A guerra começara muito antes de 1936. Nesse momento, já estava endurecida no sangue da nação inteira. Naquele dia, compreendi que pode ter-se razão e, mesmo assim, ser-se derrotado, que a coragem não é suficiente para vencer a maldade e que a força das armas destrói a alma dos homens.

 

Capítulo 2

María Zapata

 

 

 

 

 

 

Madrid, 14 de novembro de 1934

 

Não me lembro de quanto tempo passei a andar. Tinha frio, mas nem sequer reparara que tinha o pijama vestido e umas alpargatas. Parecia-me estar a viver num pesadelo do qual não conseguia acordar. As cenas acontecidas na casa repetiam-se na minha cabeça várias vezes. A minha mãe a gritar, as minhas irmãs a chorar agarradas à saia dela e o meu pai com a boca magoada e o sangue a gotejar do seu queixo por barbear. Não conseguia apagar da mente aqueles polícias com os seus cassetetes e o sargento que ameaçara levar-nos para um orfanato. Ao chegar às imediações da Cidade Universitária, percebi onde me encontrava. Era a primeira vez que estava ali, mas ouvira falar dos seus edifícios de tijolo vermelho e dos seus jardins bonitos. Levantei o olhar e observei a serra nevada no horizonte. Parecia ao alcance da mão, embora estivesse tão longínqua, como a paz que reinava no meu lar até àquela manhã. Sentei-me por baixo de uma estátua equestre e baixei a cabeça, adormecendo profundamente. Não sei quanto tempo passou até uma voz feminina e uma mão suave me acordarem.

— O que fazes aqui? Estás bem? Perdeste-te?

Uma rapariga de olhos verdes e com uma cara ovalada bonita sorria a poucos centímetros do meu rosto rabiscado de lágrimas e pó. Ao princípio, não soube o que responder. Claro que não me sentia bem. Sentia-me aterrorizado, fora de mim, mas, com aquela idade, não era fácil expressar os sentimentos e muito menos explicá-los.

— Queres que te acompanhe a casa? Onde vives?

Um grupo de amigas esperava a poucos metros. Algumas insistiam que me deixasse e se fosse embora com elas.

— Lamento muito, não posso deixá-lo aqui — disse, virando-se.

O seu corpo estava escondido por um casaco curto e arroxeado. O cabelo solto não conseguia esconder as suas feições belas.

— O meu nome é Ana. Ana Sánchez. Como te chamas?

Levantei o olhar e comecei a chorar. Parecia-me que era uma cobardia, assim como ter fugido, deixando a minha família com esses selvagens, mas não consegui evitá-lo. Quando somos crianças as lágrimas são, em certo sentido, a única forma de aliviar a tristeza da alma. Ao crescer, proíbem-nos de chorar. Dizem-nos que não devemos mostrar as nossas fraquezas. Pelo contrário, devemos suportar a dor, a perda e a tristeza sem permitir que as lágrimas lavem a nossa alma e nos ajudem a arrancar aquilo que nos pressiona o coração.

A rapariga ajudou-me a levantar-me com a mão esquerda, na direita, tinha uma pasta e umas luvas pretas. As amigas deixaram-nos e ela e eu dirigimo-nos para a cidade, que ficava a alguns quilómetros.

— Vou pagar-te o elétrico, mas tens de me dizer onde vives. Os teus pais têm de estar muito preocupados.

Ao mencioná-los, senti novamente uma dor forte no peito, mas contive-me e, com uma voz rouca produzida pelo choro, disse-lhe que era do bairro de La Latina, muito perto da Escola de San Ildefonso.

— Eu vivo, bom, não perto, mas fica a caminho.

Esperámos na paragem cheia de gente, sobretudo, de estudantes universitários. No meu bairro, não havia nenhum. Os filhos dos operários aprendiam um ofício e, aos doze ou catorze anos, começavam a trabalhar como aprendizes para que trouxessem pão para casa.

Reparei no livro que a rapariga segurava junto da pasta, era de direito. Nesse momento, um colega aproximou-se. Usava um fato às riscas, como os dos gângsteres dos filmes, tinha o cabelo cheio de gel e um bigodinho curto, que lhe tirava a expressão infantil do rosto.

— O que fazes com esse irresponsável? Não sabia que agora tomavas conta de vagabundos.

— Não é um vagabundo, é um menino perdido.

Entrámos no elétrico. O rapaz olhava para mim com desprezo, como se olhasse para um pedaço de lixo.

— É o filho de algum vermelho — queixou-se, ficando ao nosso lado. — A polícia está a perseguir todos os que participaram na greve geral de outubro. Essa gente está a destruir a Espanha. São como os ratos, temos de os exterminar para que não se espalhem como uma praga.

A rapariga fez uma careta. Fernandito era um dos amigos do seu irmão mais velho. Um parvo que, pelo terceiro ano, repetia o primeiro ano do curso e um falangista recalcitrante.

— Mete-te nos teus assuntos.

— És a irmã de um amigo e tenho de te proteger de meninos sarnentos. Não é boa ideia viajar sozinha no elétrico. Dentro de algumas horas vai anoitecer e Madrid está cheia de malfeitores e criminosos.

— Sei cuidar de mim própria. Não preciso que me protejas de nada.

— As raparigas de agora pensam que são muito independentes. Podem estudar e usar essas saias curtas, mas, muito em breve, as coisas vão mudar. Esta República ateia e sacrílega não vai durar muito — declarou o rapaz, repetindo um discurso aprendido nos encontros do seu líder José Antonio Primo de Rivera, um homem andaluz que tentava imitar as ideias fascistas de Benito Mussolini, mas que fora superado por um aluno avantajado, um austríaco chamado Adolfo Hitler.

O meu pai contava-me todas essas coisas enquanto ouvia o rádio de tarde, depois de regressar do trabalho. Gostava de o ouvir sentado no tapete da casa. Era o único momento do dia em que estávamos juntos. Depois, recostava-se na única poltrona estragada que tínhamos e, com a mão, convidava-me a aninhar-me ao seu lado. Adorava apoiar a cabeça no seu peito e ouvir o seu coração, enquanto, no rádio, tocava alguma canção de Gardel, de que gostava muito. A minha mãe ouvia rádio de manhã, mas ela preferia Imperio Argentina.

O rapaz empurrou-me e, numa curva, quase me tirou do vagão.

— Deixa o menino! — gritou Ana.

Um homem vestido com um fato-macaco de trabalho virou-se e, atravessando o rapaz com o olhar, perguntou à estudante:

— Este tipo está a incomodar-vos?

O estudante mudou o seu semblante e afastou-se de nós com o rabo entre as pernas.

O elétrico chegou à Plaza de España e, depois, subiu pela Gran Vía até à Plaza del Callao.

— Posso ir daqui — disse à rapariga, quando o elétrico parou à frente do cinema Callao.

— Não te preocupes. Ainda é cedo. Acompanho-te.

Descemos pela rua de Preciados e parámos à frente do café Varela.

— Anda, vou comprar-te uma sandes, certamente, passaste o dia todo sem comer.

Entrámos no estabelecimento. O calor do local fez-me recuperar um pouco do frio da rua. As pessoas olharam para nós quando entrámos. Um rapaz com um pijama sujo e uma rapariga universitária não lhes passavam despercebidos, sem saber qual das duas coisas era mais estranha naquela Madrid provinciana.

O empregado com um casaco branco com mais galões do que um general atendeu-nos, contrariado, pois não queria que incomodássemos os outros clientes. Alguns minutos mais tarde, as pessoas voltaram às suas vidas monótonas e eu comi uma sandes incrível de lombo quente.

— Tinhas fome? — perguntou a rapariga, com um sorriso tão reluzente que me pareceu que estava à frente de um anjo.

— Obrigado por tudo — agradeci, com a boca cheia.

— Não tens de me agradecer. Às vezes, um encontro fortuito é um presente do céu, entendes-me?

Não entendia. O único céu em que os meus pais acreditavam era o que pudesse «tomar-se por assalto». Conhecia a frase do filósofo Karl Marx porque o meu pai ma mencionara. Usara-a uma vez quando regressava do trabalho e o pároco do bairro o repreendera por não nos levar à igreja.

— Não sei o que se passou, embora esteja convencida de que deve ter sido terrível. Sair de pijama de casa e percorrer todos esses quilómetros… — murmurou a rapariga.

Queria confiar nela, mas o meu pai dissera-me que não devíamos confiar nos que não pertenciam à nossa classe. Naquele tempo, ainda não sabia que, às vezes, os filhos têm de ensinar o caminho aos pais, porque eles também se enganam.

— A polícia veio e levou os meus pais. Procuravam uns papéis. O meu pai é impressor. Bom, tem uma pequena oficina perto de casa. A minha mãe é atriz. Trabalha para a Companhia do Jacinto Guerrero.

— Nunca fui ao teatro, o meu pai é muito moderno, mas nem tanto. Deixa-me ir ao cinema alguns domingos, mas acho que esse dramaturgo encena revistas e musicais — comentou a rapariga, com uma certa timidez.

— Eu fui muitas vezes. A minha mãe leva-nos aos ensaios e, às vezes, a lanchar. Os atores são muito caprichosos e há sempre chocolate e outras delícias — contei-lhe, com a cara suja da gordura do lombo.

A rapariga limpou-me e pagou a conta. Saímos para a rua fria e toldada pelas nuvens, que ameaçavam neve.

— Que frio! — exclamou a rapariga. Depois, abriu o casaco e tapou-me um pouco.

Alguns minutos mais tarde, estávamos na entrada do meu prédio. Não havia muitas pessoas na rua e eu não sabia o que fazer. A polícia levara os meus pais e possivelmente também as minhas irmãs.

— Adeus. Foi um prazer conhecer-te, mas ainda não me disseste o teu nome.

— O meu nome é Marco Alcalde, ao seu serviço — respondi, como a minha mãe me ensinara.

A rapariga estendeu a mão e apertou a minha, fria e frágil.

— Espero que corra tudo bem. Vou oferecer-te uma frase. Memorizo uma por dia, para aprender a viver. As pessoas pensam que a existência não é uma improvisação, mas, na verdade, é um ensaio. A frase é do filósofo Ortega y Gasset: «A lealdade é o caminho mais curto entre dois corações.»

Ana virou-se e dirigiu-se novamente para a rua Mayor. Fiquei a observar como se afastava. Conseguira mitigar a minha tristeza e fazer com que me esquecesse do que acontecera naquela manhã, mas, enquanto andava pelas escadas às escuras, a minha mente voltou a recrear tudo o que acontecera. Ao chegar ao patamar da porta, estava a tremer, mas mais por medo do que por causa do frio que se apoderara dos meus ossos. Bati à porta com pouca esperança. Depois, fi-lo com desespero. Aquela casa era o meu refúgio, o que me separava do mundo feroz e selvagem que havia lá fora. No fim, ouvi uns passos que se aproximavam, alguém espreitou, mas o patamar estava em absoluta penumbra.

— Quem é? — perguntou María Zapata, nervosa.

— Sou eu — respondi, num tom de voz que parecia reavivado pela surpresa e pela esperança de não estar sozinho no mundo.

A rapariga abriu, temerosa, como se não conseguisse acreditar que era eu. Abraçou-me e acariciou-me o cabelo.

— O meu menino. Estava tão preocupada.

Fez-me entrar, preparou-me um banho, aquecendo a água numa panela grande, e deu-me roupa limpa.

— Comeste? No fim, o sargento deixou as tuas irmãs, estão a dormir. As pobres passaram um dia muito mau. Não levei a mais velha à escola, não tive problemas. Ainda fazem birra na cama, como se o choro tivesse ficado atravessado na garganta.

Naquele dia, aprendi duas lições que nunca consegui esquecer: No caminho, há sempre alguém disposto a ajudar e, às vezes, temos de mentir aos malvados. O meu professor dizia-me sempre que a mentira tem perna curta e a verdade tem o passo comprido, mas devia proteger a minha família porque, para mim, era o mais importante que tinha no mundo. O meu pai já me avisara de que os que deviam velar pela ordem pública eram muitas vezes lacaios dos poderosos.

 

Capítulo 3

A Vitória

 

 

 

 

 

 

Madrid, 18 de julho de 1936

 

Lembro-me de que era sábado, não costumava recordar os dias da semana quando estávamos de férias da escola e quase não tínhamos nada para fazer, para além de brincar e vagabundear pelas ruas. Há algumas semanas, tinha feito treze anos e os meus pais enfrentavam o problema de querer que continuasse a estudar, embora não tivessem recursos económicos para me pagar os estudos. Talvez pudessem pedir uma ajuda ao partido, que precisava de advogados e de outros profissionais ou talvez pudesse ser aprendiz na oficina quando acabasse os estudos. A minha mãe queria que estudasse. Era tão simpatizante do partido como o meu pai, mas não estava disposta a rejeitar a ajuda que o encenador da sua companhia lhe oferecera para me pagar o primeiro ano de bacharelato. Dizia sempre que o orgulho era um luxo demasiado caro para os pobres. O meu pai via os sapatos velhos das minhas irmãs e a pouca comida que conseguia trazer para casa e escolhia pôr-me a trabalhar na imprensa para que aprendesse um ofício ou levar-me a alguma obra para que aprendesse alvenaria, que sempre era melhor paga.

Naquele verão em Madrid, o calor era quase asfixiante. Os elétricos circulavam a toda a velocidade pela rua Mayor e as pessoas andavam a pé, relaxadas, tentando evitar o sol nas piores horas do dia. Estávamos em guerra, mas ninguém parecia preocupado, talvez porque estávamos a lutar há muito tempo. No dia 14 de julho, fora o funeral do dirigente de extrema-direita José Calvo Sotelo e o ambiente estava muito quente.

Há algumas semanas, a cidade cheirava ao chocolate e aos churros do inverno, mas, agora, dominava o cheiro das tripas de cordeiro, das tortilhas espanholas e do presunto acabado de cortar. Via-se os senhores nos cafés na sua reunião habitual. Alguns falavam do atropelamento de uma menina no dia anterior, outros elogiavam as pernas da vedeta Tina de Jarque, que triunfava no Teatro de la Zarzuela, e havia ainda outros que falavam do assassinato de Pepe dos cães, na estrada de Húmera a Pozuelo. As devotas amontoavam-se às portas da Igreja de Jesus de Medinaceli, para pedir três desejos. Naquele dia, não havia greves na cidade, algo quase excecional, já que, nos últimos meses, as pessoas não paravam de se manifestar por tudo e por nada, desde os operários do setor da madeira, aos funcionários ou aos mecânicos dos elevadores. À tarde, já se espalhara o rumor de que uns militares se tinham amotinado em Ceuta ou Melilla, mas parecia-nos tão longínquo, que mal nos deixava nervosos. Nessa noite, enquanto estávamos a jantar em casa, um homem bateu à porta.

— Francisco, estão a dar armas aos operários! O presidente do governo demitiu-se. A Guarda Civil está do lado da República, mas o governador civil teme que os militares assaltem a capital esta noite.

O meu pai estava vestido com umas calças leves e uma t-shirt sem mangas. Foi ao quarto, vestiu uma camisa de manga curta e pôs o chapéu. Depois, tirou o cachimbo do suporte e deu um beijo na testa da minha mãe.

— Francisco, tem muito cuidado — pediu a minha mãe, a tremer, apesar do calor asfixiante.

— Não te preocupes, mulher, que acabaremos isto com quatro tiros. Não há nada mais covarde neste mundo do que um fascista.

Antes de o meu pai se aperceber, segui-o pela escada.

— Onde achas que vais? — perguntou-me o amigo do meu pai, puxando-me a camisa.

— Quero ir com vocês. Já sou quase um rapaz.

— Pensas que matar um homem é uma brincadeira?

— Não vamos matar ninguém. Assim que dermos quatro tiros, esses militares vão render-se. Não te lembras do que aconteceu em África? Esses covardes gostam de encher a boca com a pátria e a honra, mas são uns malditos traidores — indicou o meu pai e passou-me o braço pelas costas. — Além disso, o Marco já tem treze anos, é um homem. Tem de ver com os seus olhos como os fascistas nos oferecem a revolução por que passámos anos à espera. Adulteraram as urnas e sabem que, desta vez, falamos a sério, não permitiremos que nos tirem novamente a liberdade.

Dirigimo-nos para o Quartel de Monteleón, onde uns ativistas da CNT distribuíam fuzis aos operários e os cumprimentavam com o punho ao alto. As pessoas pareciam entusiasmadas, apesar de serem quase onze da noite. Fomos com as armas até à rua de la Luna, onde se encontravam a maioria das sedes sindicais. Surpreendeu-me ver uma multidão que descia pela rua alegremente e com os braços ao alto. As pessoas pediam armas aos gritos.

— Vamos à sede do partido na ponte de Segovia. Eles saberão o que fazer. Estes anarquistas não são capazes de se organizar — disse o amigo do meu pai.

Tínhamos passado a noite a andar pela cidade, que parecia celebrar uma verbena. No domingo, começámos a descer a rua de Segovia. Entrámos no círculo socialista. As pessoas corriam de um lado para o outro, a alegria e os gritos de júbilo pareciam celebrar mais o levantamento militar do que receá-lo.

— Onde está o Largo Caballero? — perguntou o meu pai a uma rapariga que tinha várias pastas com papéis.

— Está em reunião — respondeu a rapariga, sem parar.

O meu pai conhecia Largo Caballero desde que ambos eram crianças. Nessa altura, o dirigente socialista vivia perto da sua casa, em Chamberí. Entrou na sala sem bater à porta. Meia dúzia de homens discutia ao redor de uma mesa.

— Senhor Alcalde, entre, não seja tão comedido — disse Largo Caballero, com uma certa ironia e, depois, levantou o punho e exclamou: — Companheiros!

Todos responderam ao cumprimento com entusiasmo.

— Os fascistas abriram-nos as portas do paraíso. Fracassámos em 34, mas, desta vez, ninguém nos para. Vamos tirar o cubano da presidência do governo e pôr alguém com coragem. É a hora dos audazes — disse Largo Caballero.

Não entendia porque estavam todos tão alegres, mas o seu otimismo era contagiante. As pessoas cantavam e abraçavam-se. Diziam que íamos criar um mundo novo, sem injustiças nem classes. Um mundo em que todos os homens seriam iguais e quem não quisesse encontraria a morte.

 

Capítulo 4

O quartel da montanha

 

 

 

 

 

 

Madrid, 19 de julho de 1936

 

Adormeci num banco. Alguém me tapou com uma manta e, antes de despontar a alvorada, o meu pai estava a sacudir-me para que me levantasse. Olhei para ele, atordoado, não recordava onde me encontrava nem o que acontecera naquela noite estranha.

— Vai para casa e diz à tua mãe que estou bem.

— Onde vais, pai?

— Ao Quartel da Montanha — disse, com olheiras à volta dos seus olhos azuis.

— Mas a mãe, ela…

— As mulheres têm o dom de criar vida, é por isso que a protegem e cuidam dela, como o mais sagrado que existe neste mundo. A guerra é coisa de homens. Temos de destruir o mundo para construir outro novo. Entendes? São eles ou nós. Há apenas duas realidades, a que o fascismo quer impor e o paraíso socialista. Agora, vai para casa.

Saí a toda a pressa e apanhei o primeiro elétrico. Notava-se que a cidade não dormira naquela noite. As pessoas andavam pelas ruas, hipnotizadas. Por um lado, estavam os operários em grupos armados e, por outro, as pessoas normais que, como era domingo, não tinham de trabalhar. Muitos passeavam pelas avenidas ou pelos parques e todos os cafés estavam abertos. Parecia que a cidade estava dividida entre os que viviam a guerra como uma aventura e os outros, tão impassíveis como sempre, ignorando que estava tudo prestes a mudar e já nada seria o mesmo. Pelo caminho, cruzei-me com umas carrinhas que arrastavam canhões para o Quartel da Montanha. Também vi alguns grupos de guardas civis a correr para a frente improvisada.

A minha mãe esperava acordada enquanto o resto da casa dormia tranquilamente. Ao ver-me, deu-me um abraço e começou a chorar.

— Graças a Deus que não te aconteceu nada. Passei a noite em branco. Estive a ouvir a rádio e as coisas estão a ficar feias, os militares triunfaram em Sevilha, Saragoça e outros lugares. Isto é mais do que um golpe de estado. Onde está o teu pai? — perguntou, enquanto me levava para a cozinha e me preparava o pequeno-almoço.

— Estão a rodear o Quartel da Montanha.

A minha pobre mãe pôs as mãos na cara e, sem perder o controlo, aqueceu o leite, serviu-mo com café e, depois, sentou-se ao meu lado.

— Os homens acham que podem mudar o mundo com tiros, mas a única coisa que é capaz de o transformar é a ternura. Se deixassem os filhos com as mães quando começam a descobrir a vida, sei que lhes ensinaríamos que a única forma de todos sermos irmãos é enchermo-nos de ternura. O ódio nunca mudou nada. Os cemitérios estão cheios de inveja e cobiça. O verdadeiro problema do homem está no seu coração. Entendes, Marco?

— Não sei, mãe. Como podemos convencer um fascista que deve amar? Isso é impossível, eles querem matar-nos. No fim, tudo consiste em quem mata primeiro e quem morre primeiro — repliquei, repetindo de cor as coisas que tinha ouvido o meu pai a dizer mil vezes na sede do partido ou durante os jogos de cartas no café.

— Anda, vai dormir que, certamente, não dormiste toda a noite.

Lavei a cara e estava prestes a deitar-me quando, de um lado do quarto, observei a minha mãe, intrigado. Tirou uma pequena cartolina do armário. Naquele momento, não sabia que era uma santinha. Beijou-a e pareceu rezar em voz baixa. Depois, voltou a escondê-la e chamou as minhas irmãs para que fossem tomar o pequeno-almoço. Aquele gesto assustou-me mais do que os fuzis e os gritos de guerra da noite anterior; para que a minha mãe recorresse ao velho Deus dos seus antepassados, devia pensar que aquela alegria não ia durar muito e que as ruas depressa se tingiriam de sangue.

Não sei como consegui convencer a minha mãe a, no dia seguinte, deixar-me levar um pouco de comida ao meu pai. Os operários tinham passado todo o dia a vigiar o Quartel da Montanha e os sitiados não pareciam dispostos a render-se. Os rumores de que viriam forças rebeldes de Saragoça, Valladolid ou Burgos encorajavam-nos a continuar a resistir. Encaminhei-me para o quartel num dos elétricos cheios de gente e ouvi os rumores que circulavam. Aparentemente, o golpe de estado fracassara em quase toda a Espanha, em especial nas grandes cidades, com a exceção de Sevilha e algumas capitais de província de Castilla la Vieja.

Saí com um salto no final da Gran Vía e, depois, andei com passo lento e as mãos nos bolsos até à Príncipe Pío. A verdade é que, até àquele momento, mal reparara naquele edifício robusto, gigantesco e de forma quadrada. O seu aspeto era comum, quase parecia mais um hospital do que um quartel. À medida que me aproximava, o número de pessoas que me rodeava crescia, como se estivesse a entrar numa feira, mas a uns cem metros, os operários, alguns soldados e guardas civis escondiam-se atrás de barricadas improvisadas. Várias peças de artilharia e metralhadoras apontavam para a fachada principal, mas se não fosse pelas armas e pelos canhões, ninguém teria imaginado que, naquele lugar, começaria uma das primeiras batalhas da guerra.

Consegui localizar o meu pai junto de uns operários socialistas que cobriam um dos canhões. Cada grupo sindical e cada partido tinha os seus distintivos ao pescoço ou em braceletes às cores. Quando me aproximei, um dos amigos do meu pai bateu-me na nuca e queixei-me.

— Baixa a cabeça ou ainda ta arrancam com um tiro. Pode saber-se o que fazes aqui? — perguntou o homem, muito sério.

Não entendia porque se zangara. Naquele momento, a guerra era uma espécie de brincadeira para mim. Não entendia o perigo e o sofrimento que era capaz de trazer.

— Trago a comida do meu pai — informei, enquanto me baixava.

— O teu pai está junto do canhão. Dá-lhe o que tens de lhe dar e vai-te embora. Este não é um bom lugar para crianças.

Andei entre os homens vigilantes. Alguns apontavam para a fachada principal do quartel, mas a maioria conversava em círculos enquanto fumava cigarros ou bebia cerveja gelada.

— Marco, o que fazes aqui? — perguntou o meu pai, com o semblante cansado. Tinha olheiras grandes à volta dos olhos e a pele um pouco torrada pelo sol de verão contrastava com o seu cabelo grisalho e o seu chapéu preto.

— Trago-te a comida.

O meu pai franziu o sobrolho ao princípio, embora a confusão passasse assim que lhe mostrei o pão branco, o salsichão e o chouriço. Depois, tirei uma garrafa de vinho e vários dos seus amigos aproximaram-se, para tentar comer daqueles manjares.

O meu pai afastou-os com cotoveladas e aproximou-se de um homem de cabelo escuro.

— Toma, Orad, que isto vai ajudar-nos a recuperar as forças.

O homem sorriu e esticou a mão para pegar nas rodelas de pão e de chouriço. Saboreou tudo como se se tratasse de um manjar e, depois, bebeu um gole da garrafa de vinho. Então, ouviram-se algumas rajadas de tiros e todos se atiraram para o chão, menos o tal Orad e o meu pai, que pareciam imunes ao medo.

— Outra vez esses malditos fascistas! — gritou o meu pai, que se virou, apontou o fuzil e disparou várias vezes.

Quando se acalmou, sentou-se ao lado do canhão e continuou a comer. Ofereceu-me um pouco de comida e eu senti-me a pessoa mais feliz do mundo.

Nesse momento, uns aviões sobrevoaram a zona. Todos começaram a correr à espera que caísse uma bomba, mas o céu começou a nublar-se e, uns segundos mais tarde, milhares de papéis voaram por todo o lado. O meu pai agarrou um em voo e viu que era um aviso para os que resistiam no Quartel da Montanha. O panfleto autorizava os soldados em nome da República se se rebelassem e desobedecessem aos seus comandos.

Fiquei com o resto dos homens durante mais algumas horas. Muitos deles matavam o tempo a jogar às cartas ou a cantar canções, até um grupo de soldados se aproximar da barricada e se dirigir a Orad, o homem que parecia a cargo do canhão.

— Temos de atacar. Não podemos deixar que a noite chegue — disse um dos soldados.

— Não acho que saiam por causa de algumas explosões — comentou o artilheiro.

— Em minutos, vão lançar umas bombas do ar, esse será o sinal.

Assim que os soldados se afastaram, o meu pai virou-se para mim.

— Vai-te embora antes que comece o tumulto.

— Sim, pai — respondi, obediente, mas mal pegara na garrafa de vinho vazia quando o som dos aviões me assustou.

Ouvi uns assobios e, depois, um estrondo forte que me fez tapar os ouvidos instintivamente. As bombas caíram na sua maioria nos pátios do edifício, mas uma atingiu a fachada, que caiu por cima da escadinha dupla.

Orad deu a ordem de carregar o canhão e disparou. A explosão que produziu foi tal que me atirei ao chão e pus a cabeça entre as pernas, como se isso pudesse proteger-me do fogo. Os tiros das metralhadoras assobiavam por cima das nossas cabeças e, durante alguns minutos, foi tudo um caos. Ao meu lado, caiu um homem ferido. Levantei o olhar e os meus olhos encontraram-se com os dele. Parecia mais um menino assustado do que um miliciano.

Em pouco tempo, outro soldado caiu aos meus pés. O seu corpo rígido e ensanguentado não me deixou a menor dúvida de que estava morto. Nunca tinha visto um cadáver. O seu rosto estava sujo e perdera um pouco da sua humanidade. Parecia um bocado de carne atirado para a rua.

Sentia-me estranhamente entusiasmado. O cheiro a pólvora e o estrondo dos canhões fez com que a adrenalina começasse a bulir nas minhas veias e foi então que decidi levantar a cabeça. O meu pai disparava sem cessar enquanto gritava para os seus homens para que o imitassem. Outro grupo, sentado no chão, encarregava-se de carregar os fuzis e dá-los aos atiradores.

De um dos terraços do edifício que estava atrás de nós ouviam-se tiros de metralhadora, enquanto os brilhos nas janelas do quartel mostravam a resposta ao ataque.

Não sei quanto tempo durou o tiroteio, possivelmente uns minutos, mas pareceu-me uma eternidade. Vimos uma bandeira branca no edifício e os milicianos correram, alegres, para a escadinha. A maioria deles com os fuzis ao alto em sinal de vitória. O grupo do meu pai ia juntar-se a eles, quando lhes fez um gesto e lhes gritou que se baixassem.

As rajadas das metralhadoras dos fascistas dispararam para os milicianos que avançavam e várias dezenas deles caíram ao chão. Os que não tinham sido atingidos correram novamente para as barricadas e o nosso grupo respondeu a tal baixeza com todas as armas. Observei o meu pai. Parecia furioso com o engano dos fascistas e a ingenuidade dos seus camaradas. Fora um golpe de canalhas, não de cavalheiros.

Ao meio-dia, quando o sol batia com mais força, viram-se novamente bandeiras brancas. Desta vez, ninguém se mexeu até se abrirem as portas do recinto e os primeiros soldados atirarem as armas para fora. Alguns defensores do quartel saíram a correr, atirando os capacetes e as armas enquanto gritavam vivas para a República. Os guardas de assalto adiantaram-se e seguiu-se uma massa de milicianos de todos os partidos e sindicatos. Todos gritavam, eufóricos, enquanto os outros cantavam os seus hinos guerreiros. O meu pai virou-se para mim e ordenou que não me mexesse dali.

Enquanto esperava, comecei a ouvir tiros dispersos. Mais tarde, ouvi os gritos de alguns oficiais, que eram tirados do quartel e espancados à frente da multidão. O sangue corria por todo o lado, mas a única coisa que me impressionava era o rosto assustado dos prisioneiros.

Desobedeci ao meu pai e aproximei-me do edifício, curioso. Tive de passar pelos cadáveres caídos na calçada e subir a escadinha repleta de corpos. Então, vi um rapaz da minha idade a apontar uma pistola a um oficial que, com as mãos ao alto, descia para a rua.

Um jornalista tirava fotografias ao meu lado e muitos curiosos aproximaram-se, enquanto os milicianos pegavam em todas as armas possíveis. Ao entrar num dos pátios do quartel, fiquei bloqueado. Os cadáveres contavam-se às dezenas. Alguns oficiais que se tinham suicidado ainda tinham a arma na mão. De lado, grupos de homens disparavam para os falangistas que se tinham juntado aos soldados.

Alguns guardas de assalto arrastaram o general Fanjul, que liderara os rebeldes. Ninguém se aproximou dele, ainda que, de longe, cuspissem e o repreendessem.

Então, vi o meu pai sozinho, sentando num banco de pedra. Tinha o fuzil pendurado às costas e uma expressão triste no olhar. Pensei que me repreenderia por não lhe ter obedecido, mas mal se alterou. Sentei-me ao seu lado, no meio daquele campo de morte, e passou-me o braço por cima.

— Sempre tinha ouvido dizer que alguns mortos eram necessários para criar um mundo sem violência. Desejar matar não é o mesmo do que fazê-lo. Até hoje, nunca tinha disparado um tiro nem matado ninguém. Pensava que acabar com os fascistas me proporcionaria algum tipo de prazer, já sabes que são eles ou nós. Agora, sei que matar um homem não é defender uma ideologia, é matar um homem. Estes eram os meus irmãos, não há pior guerra do que uma civil. Espero que a matança acabe depressa e voltemos a enfrentar-nos todos nas ruas com garrafas ou no parlamento, mas não assim — sussurrou.

A dor do meu pai podia sentir-se no seu rosto emocionado, nas suas palavras febris e no seu olhar enfastiado. Aquele dia que, em muitos sentidos, dava começo a uma das piores guerras da história, acabara para ele. Continuava a ser um homem idealista e desejava que a revolução proletária triunfasse, mas tinha consciência de que algo mudara na sua alma nesse dia quente. Não teria sabido dar nome àquela tristeza e eu também não soube como chamá-la naquele momento, mas era, sem dúvida, a dor causada por uma alma rasgada quando descobre que não há nenhuma ideologia pela qual valha a pena matar.

Levantei o olhar e observei os cadáveres. Quase todos eram de jovens e compreendi que lhes tinham roubado algo mais valioso do que a vida, tinham-lhes arrebatado o direito a um futuro.